07/01/2004 - 10:00
Na Feira do Rato, um conjunto de ruelas infestadas de lixo e rodeadas por barracos onde se vende de tudo, inclusive programas com meninas, um grupo de percussionistas e capoeiristas do Erê, ONG criada há uma década em Maceió, batuca timbaus, surdos e repiques cercados por dezenas de meninos e meninas pobres nascidos na periferia da capital alagoana. Calça laranja e camiseta preta, Isaias, Jucy, Andréia, Chico, Luciano e Júnior, todos ex-meninos de rua, mostram ritmos e caminhos para quem ainda vive por lá. Ao som mágico do batuque, José, Ana, Rebeca e muitos outros guardam suas guimbas de cigarro e garrafas com cola. Por um momento, querem cantar, dançar e sorrir. Mais tarde, espremidos entre barracos infectos e a linha do trem, por onde passa o velho expresso Maceió–São Lourenço, o grupo de 20 menores faz a contagem da noite. Dessa vez estão todos lá: a menina de 14 anos, grávida que cheira cola compulsivamente; o menino que sobreviveu a um tiro na cabeça, dado por um policial; o garoto franzino que sonha ser jogador de futebol; o líder do grupo, que, como os demais, batiza os amigos desaparecidos com o mesmo prenome. “O finado Labirinto foi pego de madrugada, dormindo na Praça Sinibu (centro de Maceió). Deram o garrote, levaram e ninguém mais viu”, lembra ele, referindo-se ao adolescente José Heleno da Silva, sequestrado há três anos por ocupantes de um Gol em pleno comércio de Maceió. “Finado Nel foi preso agora na Semana Santa e não apareceu mais”, conta outro. “Finado Alan dormia na rua comigo. Um dia vi ele esparramado, cheio de tiro, logo ali”, aponta um menino, mirando uma esquina escura. “A gente jogava bola, um policial chegou, encostou o carro e não falou nada. Foi pou-pou-pou! Acabou para o finado Davi”, mais um se recorda.
Cocada, Anjinho, Galego, Buda e Zé Carlos Tartaruga foram sequestrados e fuzilados. Bolinho, Careca e Robinho morreram na faca. Macarrão e Zé Baú apareceram queimados. Amendoim e Paulinho, degolados. Seus corpos somem nas ruas e aparecem nos canaviais, na restinga ou em algum terreno baldio do Pontal da Barra. Em outros casos, não há sequer corpos, só a lembrança dos amigos das ruas e das pessoas com quem conviveram em abrigos e centros de ressocialização. Ângela, Gambá, Morgana, Bonita, Labirinto e muitos outros desapareceram. Investigações feitas pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e por ONGs como o Centro Erê e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua de Maceió revelam uma realidade que pouca gente quer enxergar: nos últimos anos, meninos viram “finados” nas ruas de Alagoas, quase sempre sem entrar nos registros policiais ou processos nos fóruns. Números conservadores apontam para a morte ou o desaparecimento nos últimos anos de pelo menos 60 meninos e meninas de rua, entre nove e 17 anos. Em sua maioria, autores de pequenas infrações que conheceram um outro tipo de justiça – a dos grupos de extermínio, que atuam impunemente no Estado. A Comissão de Defesa da Criança da OAB, em conjunto com o Fórum dos Conselhos Tutelares, tem um levantamento ainda mais assustador: 329 jovens de famílias carentes, com até 25 anos, foram assassinados em Alagoas entre janeiro e novembro deste ano. Muitos teriam sido executados.
Omissão social – “Estamos infestados de grupos de extermínio”, denuncia o advogado Gilberto Irineu de Medeiros, presidente da Comissão de Defesa da Criança, do Adolescente e do Jovem da OAB alagoana. “E os meninos de rua são as vítimas perfeitas, vistos como um estorvo que todo mundo preferia não ter”, completa Maria Cristina Nascimento, coordenadora-geral da ONG Erê. A maioria não tem nenhum documento e vive – e morre – conhecida apenas pelo apelido, registro das ruas dessa geração de excluídos. No documento “Casos de execuções extrajudiciais em Alagoas”, entregue há dois meses à relatora especial da ONU, a paquistanesa Asma Jahangir, a OAB identifica matadores como os “ninjas”, os “encapuzados” e os “motopistoleiros” agindo na periferia de Maceió, uma região de grotas batizada de Tabuleiro, autores de pelo menos nove execuções e chacinas. “Tudo leva a crer que esses grupos são liderados por policiais civis e militares”, informa o deputado estadual Paulo Fernando Santos (PT), o Paulão, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa.
“Limpeza” – “Esses matadores prestam serviço a comerciantes, fazendeiros e políticos locais, fazendo o que eles chamam de limpeza”, afirma o deputado federal Luiz Couto (PT-PB), relator da CPI que investiga os grupos de extermínio e as milícias privadas no Nordeste. Como os “ninjas” ou “justiceiros de União”, formados por cabos e soldados do próprio 2º Batalhão da PM em União dos Palmares (AL), que no dia 5 de setembro de 2002 colocou quatro jovens de joelhos e os executou. Sidrônio Francisco da Silva, 15 anos, Cisenando Francisco da Silva, 17, Thiago Holanda da Silva, 18, e Maurício da Silva, 19, eram acusados de pequenos delitos. Em outra chacina, no dia 9 de junho de 2001, no Conjunto Santa Lúcia, em Maceió, quatro jovens foram assassinados por policiais. Um deles, o mecânico David Araújo dos Santos, 17 anos, estava voltando para casa. “Não tenho mais medo. O único medo que tinha era perder meu filho”, diz o corretor de imóveis José Aluízio dos Santos, 42 anos, pai de David, que teve de se mudar depois que sua casa foi arrombada e revirada quatro vezes. Até um detento é acusado de participar de uma das últimas chacinas, no Conjunto Jardim das Acácias, em Maceió, quando dois menores, de 15 e 17 anos, suspeitos de assaltar uma videolocadora, foram executados com tiros de pistola 380. O preso Francisco José de Assis, conhecido como Tico, teria deixado a cadeia, liderado a chacina e depois voltado para a cela.
Desde o início do ano no cargo, o secretário de Defesa Social de Alagoas, Robervaldo Davino, diz que existia, até o governo passado, conivência do Estado com policiais matadores, mas que isso mudou. Segundo o secretário, esse ano foram demitidos 12 policiais militares e seis civis, muitos envolvidos em homicídios. Outros 36 PMs estão detidos em um presídio militar. “O crime cometido por policiais é mais difícil de ser esclarecido porque o cidadão pensa duas, três, quatro vezes antes de testemunhar”, explica. Alagoas não tem programa de proteção a testemunhas. Sobre o extermínio de jovens pobres em Alagoas, Davino prefere não se arriscar. “Temos meninos de rua assassinados, mas o número não é alarmante”, acredita. Oficialmente, segundo informam os dois IMLs de Alagoas (Maceió e Arapiraca), o Estado registra, em média, 75 homicídios por mês. Pelo menos um em cada dez corpos que chegam são de menores de 17 anos. Metade tem menos de 30 anos. Oito em cada dez são “pardos”, na classificação do IML. A OAB desconfia da existência de cemitérios clandestinos. Em julho de 2002, uma amostra: oito corpos e duas ossadas humanas foram encontrados por acaso em uma fazenda no município de Marechal Deodoro. Vítimas também são “desovadas” em outros Estados, como os corpos de sete moradores da periferia da capital, entre 17 e 22 anos, encontrados em junho de 2002, a 200 quilômetros de Maceió, na cidade pernambucana de Palmares. Eles haviam sido presos dias antes por policiais civis, sob a acusação de terem roubado uma serraria.
Impunidade – “Não temos essa dúvida. A eliminação sistemática de garotos no Estado é impressionante”, diz Sandra Carvalho, secretária executiva da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos. Em fevereiro, a Justiça Global, ONG que Sandra representa, mandou uma equipe a Alagoas. Voltou horrorizada. Já no táxi, no Aeroporto da cidade, foram informados das leis locais. “Não tem violência em Maceió”, disse o taxista. “Aqui só morre político safado, mulher que trai e menino que rouba. Roubou, morreu”, listou o taxista. Segundo o Núcleo Temático para Criança e Adolescente da Universidade Federal de Alagoas, existem cerca de 1.500 crianças e adolescentes somente nas ruas de Maceió. Mas a Pastoral da Criança na capital informa que o quadro é mais grave: apenas na faixa até seis anos, 98 mil crianças vivem em Maceió. Metade vive “em situação de miséria absoluta”, na periferia ou nas ruas. Em bancos na praça dos Martírios, tendo ao fundo o Palácio dos Martírios, sede do governo do Estado, e a Prefeitura de Maceió, meninos e meninas só dormem em grupo. “Ninguém sabe se vai acordar”, conta um deles, 14 anos. “A gente vive contando que é a polícia que mata, mas ninguém ouve”, diz uma menina de 15 anos.
“A impunidade gera mais crimes”, constata Átila Vieira Correia, coordenador do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua,
que já foi a 22 enterros nos últimos dois anos. Átila já perdeu a conta dos corpos de garotos que teve que identificar no IML, a maioria recebendo na certidão de óbito apenas o apelido. Em delegacias e fóruns, pouca investigação. A indignação levou Átila a correr as ruas para organizar ao longo de cinco meses uma lista de menores mortos e desaparecidos. Batizado de “Ruas lavadas com sangue”, o documento conseguiu somar 106 assassinatos de meninos de rua, apenas em Maceió, durante 12 anos. A maioria com características de execução. Outra pesquisa, do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente Zumbi dos Palmares, intitulado “Uma década de violência”, confirma esse quadro assustador. Na década de 90, revela o estudo,
706 crianças e adolescentes foram vítimas de mortes violentas em Alagoas. Pelo menos 40 meninos de rua estão nessa lista. Alguns
corpos nunca foram encontrados.
Memória macabra – O Centro Zumbi dos Palmares desistiu recentemente de acompanhar processos cujas vítimas são menores. “O pouco que chega ao fórum é arquivado por falta de autoria”, revela o educador José Reginaldo dos Santos, coordenador do centro. Há três meses, uma rebelião destruiu parcialmente a unidade de internação provisória. Desde então, 59 menores estão presos junto com adultos em dois presídios e no manicômio judiciário de Maceió. Reginaldo faz outra denúncia. “Adolescentes que cometem atos infracionais graves, como homicídio e latrocínio, são eliminados alguns dias depois de soltos”, diz. O Juizado da Infância e da Juventude diz
não ter dados sobre o assunto. “Muitos que conheci não vivem mais”, conta Laércio Gomes da Silva, 26 anos, que hoje vende verduras no mercado. Desde os sete anos morando nas ruas, engraxando sapatos e tomando conta de carros, Laércio é um sobrevivente, mas não acredita em mudanças. “A pobreza é muita. E a maldade também. Extermínio
de crianças é coisa que nunca acaba por aqui”, resigna-se. Ele ainda
se lembra de Severino da Silva, o Biro-Biro, e Possidônio de Araújo,
seus colegas nas ruas, que em outubro de 1990 foram executados e tiveram seus corpos jogados em um canavial da Mata do Rolo, em Rio Largo, vizinha a Maceió. Essas mortes despertaram a atenção de entidades de apoio a crianças e adolescentes, que passaram a divulgar listas de jovens marcados para morrer. Com uma realidade como essa,
diz o advogado José Edmilson de Souza, coordenador do Fórum Estadual de Conselhos Tutelares, discussões sobre redução de maioridade penal em Alagoas são irrelevantes. “Aqui não apenas condenam, como matam os menores”, afirma.