21/12/2005 - 10:00
Numa das melhores passagens do documentário Martins’ passion (Die Martins-passion, Alemanha/França, 2004) – que inaugura as Edições ISTOÉ, nas bancas e livrarias de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba a partir desta semana e posteriormente nas outras capitais –, o pianista e maestro João Carlos Martins, 65 anos, orienta jovens pianistas, mestrandos da lendária Julliard School, de Nova York, a encontrar seu próprio estilo de interpretação. Para um rapaz que enfrenta um prelúdio do Cravo bem temperado, de Bach, especialidade de Martins, ele explica que, em composições como essa, é melhor esconder as notas que explicitá-las. A uma pianista de origem japonesa, ele aconselha: não tenha medo de ser romântica. Ao transmitir esses ensinamentos, Martins deixa a música passar pelo seu corpo. É uma imagem feliz, que ilustra à perfeição o título do filme, premiado em quatro festivais, visto por mais de 1,5 milhão de pessoas na França e na Alemanha e que continua sem data de exibição nos cinemas do País. Sua avant-première em um DVD, ao preço de R$ 32,80 – ou R$ 24,90, se comprado junto com IstoÉ –, portanto, acontece agora e é fundamental para os amantes da música.
A diretora Irene Langemann, nascida na Sibéria mas filha de alemães, teve a idéia do filme ao ler, em junho de 2002, uma reportagem de capa da revista alemã Der Spiegel. Era uma matéria sobre a relação do pianista com Bach, de quem é considerado um dos maiores intérpretes, ao lado do canadense Glenn Gould, sendo o único no mundo a gravar toda a sua obra em piano. “Ela disse para mim que só faria o documentário se eu realmente expusesse tudo de bom e ruim da minha vida e eu respondi que só faria se fosse também dessa maneira”, conta Martins.
No meio do processo de filmagem, acontece o inesperado: Martins, que já não tocava com a mão direita, vítima de vários acidentes que levaram ao corte de um nervo, passa a ter problemas com a mão esquerda. O filme capta todo o sofrimento do pianista, que se submete a várias terapias, algumas extremamente dolorosas, como aquelas de injeção de botox nos nervos. “Tinha melhoras rápidas, mas cheguei à conclusão de que tocar apenas com a mão esquerda servia apenas a uma satisfação pessoal”, conta Martins, que hoje se dedica exclusivamente à regência. “Estou na melhor fase da minha vida.”
Paralelamente à luta obstinada de Martins, o filme mergulha no tempo, revelando passagens históricas, como a apresentação do jovem pianista no Festival Casals, em 1958, interpretando a Sonata nº 3 de Prokofiev, cena garimpada no Canal Educativo de Porto Rico. Cada segundo das imagens da NBC americana com sua apresentação ao lado da Los Angeles Philarmonic Orchestra, regida por Zubin Mehta, em 1970, quando tocou o antológico Concerto para piano e orquestra, de Alberto Ginastera, custou à produção US$ 85. Sem seguir uma cronologia rigorosa, a diretora Irene revisita o passado através de encontros com figuras-chave na brilhante carreira de Martins, como o agente americano Jay Hofmann e o alemão Hainer Stadler, produtor de todos os seus discos, com quem tinha brigas homéricas. “Mas o sacana sempre tinha razão”, conta. Irene promove também um bate-papo entre ele e Pelé, e outro com o pianista de jazz Dave Brubeck, ocasião em que os dois tocam juntos – Brubeck tem dois pianos Baldwin em sua casa.
Iniciação – Na tentativa de fazer um retrato em profundidade, a diretora leva Martins
a Cartagena, na Colômbia, para revisitar um bordel onde ele se hospedou por
quatro noites na juventude. “Eu tinha 19 para 20 anos, estudava oito horas por dia,
e quando vi aquelas morenaças…”, lembra ele. O problema não foi a iniciação
sexual do jovem, mas a sua decisão de convidar as prostitutas para o concerto que daria no dia seguinte, 12 delas, exuberantes, ocupando a frisa ao lado do prefeito e do bispo local. É tudo verdade. Fantasia mesmo é a insinuação, feita pelo seu biógrafo David Dubal, professor da Julliard School, de que Martins teria participado
de um duelo em Veneza e quase sido atirado no Grand Canal. Piadas de amantes
de ópera, com certeza.