A paixão pela cultura brasileira é tal que o embaixador indiano Amitava Tripathi, 56 anos, resolveu começar a pintar influenciado pelo encanto tropical. Uma exposição de sua arte abriu na quinta-feira 4 o novo consulado da Índia em Belo Horizonte. A abertura do consulado não é apenas o apreço do embaixador pela arte mineira – ele é um fã confesso das obras do Aleijadinho –, mas mais uma das iniciativas da Índia para expandir o comércio bilateral, hoje estimado em US$ 1,227 bilhão, e que, se for cumprida a meta do governo indiano, deverá alcançar US$ 5 bilhões nos próximos cinco anos. Para fomentar esse intercâmbio, o presidente Luis Inácio Lula da Silva deverá visitar a Índia a partir de 26 de janeiro de 2004, a mais importante data nacional para os indianos. O presidente levará
com ele um grupo de empresários dispostos a comercializar em
áreas como agronegócios, biotecnologia, informática, espacial e aeronáutica. A viagem do presidente brasileiro será mais um passo
para o fortalecimento do Grupo dos Três (G-3), bloco estabelecido em junho deste ano pelo Mercosul, Índia e África do Sul. Segundo pesquisa do banco Golden Sachs, o G-3 e a China deverão formar o maior bloco econômico do mundo em 2050. Para o embaixador Tripathi, se o Brasil é conhecido na Índia apenas pelo futebol e pelas mulheres bonitas e os indianos no Brasil pela ioga, é hora de esses dois países emergentes se firmarem realmente como grandes parceiros comerciais e estabelecerem uma nova e próspera rota.

ISTOÉ – O que o governo da Índia espera da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país em janeiro próximo?
Amitava Tripathi

Em seu discurso inaugural, o presidente Lula identificou a Índia, ao lado da China, da Rússia e da África do Sul, como países prioritários em sua política de governo. Desde então, tivemos o intercâmbio de visitas dos ministros das Relações Exteriores dos dois países e assim fomos capazes de identificar as áreas em comum. Uma das mais significativas é a área de infra-estrutura. Empresas indianas gostariam de realizar joint-ventures com as brasileiras. A maior parte das estradas de ferro no Brasil, por exemplo, está na costa do País. Mas o Brasil está se tornando um dos maiores exportadores de produtos agrícolas e minerais, que estão no Centro-Oeste do País. Então, essas áreas terão que ser ligadas às regiões costeiras e, portanto, vocês necessitarão de estradas de ferro. Duas companhias indianas, Ircon e Rites, estão prontas para trabalhar com o governo federal brasileiro, com as administrações estaduais e até com as empresas privadas. Também no setor farmacêutico existem cooperações que podem ser incrementadas. A companhia indiana Cellofarm já está no Estado do Espírito Santo e vem produzindo quatro diferentes drogas. Estamos também provendo os ingredientes para a produção de medicamentos contra o vírus HIV, da Aids.

ISTOÉ – O sr. certa vez disse que com a formação do Grupo dos Três (G-3), constituído pelo Mercosul, África do Sul e Índia, está sendo restabelecida a melhor rota do Oriente. Por quê?
Amitava Tripathi

O navegador Pedro Álvares Cabral estava a caminho da Índia quando aportou no Brasil. Esta já era a melhor opção comercial
para quem queria alcançar o Oriente. Os portugueses sabiam disso.
E assim, ainda naquela época, realizaram vários intercâmbios de
produtos agrícolas, como a manga, que veio da Índia, e o caju, que
saiu do Brasil. No período colonial, os brasileiros tiveram dificuldades
em adaptar o gado europeu às terras brasileiras. Por isso, importaram gado da Índia. Hoje, mais de 85% do gado brasileiro é de origem
indiana. Mas, durante séculos, o comércio bilateral ficou extremamente limitado e agora, finalmente, os dois países retomam essa rota. Brasil e Índia estão se redescobrindo.

ISTOÉ – Existe uma projeção da respeitada Goldman Sachs de que a China aparecerá em 2050 como a maior economia mundial e a Índia estará em terceiro lugar, somados ao Brasil e à Rússia.
Amitava Tripathi

 A China é um país poderoso. Brasil, Índia e China já agem conjuntamente em situações de interesse comum, como aconteceu em Cancún. Há grande cooperação também em termos bilaterais. O comércio entre o Brasil e a China chega a US$ 5 bilhões anuais e da Índia com a China a mesma quantia. Quanto à entrada da China no G-3, estamos ainda em conversações. O primeiro passo é conseguir resultados concretos entre Brasil, África do Sul e Índia.
 

ISTOÉ – E quais seriam as posições que Brasil e Índia poderiam defender conjuntamente no cenário internacional?
Amitava Tripathi

 Já estamos defendendo na OMC, no Conselho de Segurança
da ONU e no combate às doenças endêmicas, como a Aids. Depois da visita à Índia do presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1996, e de outros ministros durante os anos seguintes, os dois países diversificaram a cooperação bilateral. Entramos em setores como a biotecnologia, farmacêuticos, espacial e oceanografia. Em 2002, o comércio bilateral
foi de US$ 1,227 bilhão e nossa meta é chegar a US$ 5 bilhões nos próximos cinco anos. Existem produtos que queremos desenvolver
mais, como o etanol.
 

ISTOÉ – Quais são as estratégias para atingir essa meta?
Amitava Tripathi

Hoje já existe um certo nível de comércio bilateral estabelecido. Nós, por exemplo, vendemos diesel e compramos óleo
bruto dos brasileiros. Gostaríamos que esse intercâmbio comercial passasse a ser muito mais sofisticado. A Embraer, por exemplo, vendeu para a Índia cinco aviões VIP este ano. A entrega está prevista para 2005. E estamos contando com maior cooperação com a Embraer no futuro, inclusive na área de defesa, com a compra de radares e equipamentos de vigilância. Nós também desenvolvemos na Aeronáutica alguns aviões de combate leve que, imaginamos, podem ser úteis para a vigilância das imensas fronteiras brasileiras.

ISTOÉ – Como estão os acordos na área de biotecnologia?
Amitava Tripathi

Brasil e Índia ocupam os principais lugares no mundo em agronegócios. Na cooperação, devemos agir em três níveis. Na Organização Mundial do Comércio, para proteger nossos interesses em comum; no campo legal, para fazer leis de intercâmbio; e, no campo tecnológico, para viabilizar maneiras de desenvolver e comercializar nossos produtos. Porque não adianta desenvolver produtos se
não houver um mercado para absorvê-los. Existe uma grande ênfase
nos produtos orgânicos, porque os empresários começam a se conscientizar das necessidades da biotecnologia para a sobrevivência
do meio ambiente, da despoluição das águas e das terras. O Brasil
tem recursos para alimentar o mundo. Mas será necessário tecnologia.
O governo brasileiro pode adquirir tecnologia de outros países, mas
não pagando o mesmo preço que pagaria pela indiana. Um bom
cientista americano custará US$ 60 mil a US$ 70 mil por ano. Um cientista similar da Índia custará US$ 15 mil. Outro detalhe: pelo fato de o Brasil e a Índia serem países emergentes, o maquinário usado pelos brasileiros é muito similar ao usado pelos indianos. E máquinas muito sofisticadas, como as usadas no Primeiro Mundo, podem não ter utilidade em lugares onde não há conhecimento tecnológico suficiente para operá-las. Então, tanto a Índia como o Brasil precisam do que se chama de tecnologia apropriada. Por isso, em países como os nossos, é necessário ter vários tipos de tecnologia.
 

ISTOÉ – Certa vez, o sr. mencionou que, para o Brasil e a Índia, a distância e o tempo são problemas que dificultam o comércio bilateral. Até porque são cerca de 45 dias para trazer um produto indiano ao Brasil. Como enfrentar essas dificuldades?
Amitava Tripathi

 Uma das maneiras de cortar caminho é exatamente a cooperação do G-3, que começou em junho deste ano. Se formos capazes de estabelecer acordos entre os três países, o custo e o
tempo do transporte serão drasticamente reduzidos. Acreditamos
que a cooperação do hemisfério sul é fundamental. Acreditamos
que Brasil, África do Sul e Índia não são apenas grandes economias isoladas, mas o centro de três importantes regiões econômicas, Mercosul, SADC (Comunidade para o Desenvolvimento do Sul da
África) e Asean, e assim faremos parte de um mercado muito maior. Estamos levando muito a sério este acordo do G-20 Plus (União dos países emergentes liderados pelo Brasil contra o protecionismo agrícola da União Européia e dos EUA). Um dos resultados positivos foi a posição comum nas negociações de Cancún.

ISTOÉ – Qual é a imagem do Brasil entre os indianos?
Amitava Tripathi

 Os indianos conhecem o Brasil pelo que sai na nossa
imprensa, o que é bastante positivo. A fama do presidente Lula na
Índia é muito boa. Primeiro porque, ao contrário do que diziam, ele
está obtendo bons resultados na economia, sem rebeliões sociais. Ele mantém os investidores estrangeiros felizes e, ao mesmo tempo, a população brasileira está esperançosa de que as mudanças virão.
Isso é um grande feito. As estatísticas no Brasil falam por elas mesmas de como o País caminhou neste último ano: a estabilidade do real, superávit na economia. Ocasionalmente, aconteceram problemas no Congresso, mas, se formos ver como um todo, essa foi uma transição muito pacífica. O sucesso do presidente Lula é muito importante para nós, países em desenvolvimento, que somos 80% do planeta. Lula está com a maioria e mostrou um grau de compaixão pelos desprivilegiados que é extremamente importante.

ISTOÉ – Mas em relação aos brasileiros? Como somos vistos pelos indianos?
Amitava Tripathi

Como o país do futebol, das praias encantadoras e de mulheres belíssimas como a modelo Gisele Bünchen. Mas os indianos não sabem, por exemplo, que o Brasil tem um dos mais sofisticados agronegócios no mundo ou uma indústria manufatureira de alta qualidade, como a automobilística. Não sabem também que o Brasil é excelente na engenharia de construção, com pontes e estradas ótimas. O planejamento urbano de Curitiba também é desconhecido. E é essa sofisticação brasileira que os indianos precisam conhecer. Por outro lado, os brasileiros também precisam entender que a Índia não é apenas a terra da magia, a terra da ioga. Essa é apenas uma parte da Índia, que também apresenta seu lado moderno na ciência e na tecnologia. Alguns dos melhores cientistas do mundo são indianos e estão nas grandes universidades do primeiro mundo. Acaba de ser anunciado que o terceiro computador mais rápido do mundo foi construído por indianos na Califórnia. Cerca de 27% do software no mundo é produzido pelos indianos, o que faz os americanos começarem a se preocupar. A Índia desenvolveu certos tipos de tecnologia que serão extremamente importantes num futuro próximo.
 

ISTOÉ – Para incrementar o comércio bilateral serão necessárias reformas, como a tributária. O sr. acredita que o presidente Lula será capaz de fazê-las?
Amitava Tripathi

 Assim como aconteceu na Índia, existe uma necessidade de reformas no Brasil, como a tributária e da Previdência. O presidente não completou ainda o que tem de ser feito, mas já conseguiu um grande progresso. E não vejo razão pela qual ele não consiga levar em frente esse projeto. Feitas essas reformas, os recursos terão de ser redirecionados às populações mais pobres. As populações mais carentes precisam essencialmente de três coisas: acesso à alimentação, à educação e à saúde. Se o governo for capaz de canalizar recursos para essas áreas, terá sucesso. Na Índia, por termos uma população seis vezes maior que a do Brasil, temos seis vezes mais problemas.

ISTOÉ – A Índia já fez uma profunda reforma agrária. Que lições desse processo indiano o Brasil poderia tirar? .
Amitava Tripathi

Uma grande vantagem que o Brasil tem sobre a Índia é que vocês tem muito mais território para uma população bem menor.
Então, é uma questão de planejamento. Não quero dizer aqui o que o governo brasileiro deve fazer, mas seria muito bom se encontrasse uma maneira de lidar com as terras improdutivas. Na Índia, tomamos duas iniciativas: nacionalizamos as terras improdutivas e as distribuímos
entre os agricultores. Mas é preciso cuidado, porque se as terras se tornarem muito pequenas, elas não poderão ser mecanizadas e, consequentemente, estarão sujeitas a uma menor produção. Então, para nós, a melhor saída foi a formação de cooperativas que agrupassem pequenos agricultores que pudessem usar maquinário de alta tecnologia. Pela escassez de terra, nossa agricultura é intensiva e não extensiva. Ao lado desses pequenos agricultores, incentivamos pequenas fábricas, como a têxtil. Então, as pessoas têm outras fontes de renda e não apenas a terra. É um esforço conjunto. A Índia é hoje o maior produtor de leite e isso aconteceu graças a esse sistema. Com o açúcar também foi assim. Além disso, o governo fixa o preço do produto, então o agricultor ou o pecuarista não perde na venda. O setor privado sabe que terá que pagar o preço estabelecido pelo governo. O sistema não é perfeito, mas estamos trabalhando. Uma lição que aprendemos é que tudo que é dado de graça, é mal aproveitado

ISTOÉ – Como o sr. analisa as negociações para a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca)?
Amitava Tripathi

Acredito que foram feitos progressos entre os países.
Brasil e EUA são parceiros naturais e, como qualquer país, o Brasil também está tentando alcançar um lugar privilegiado, mas que beneficie a todos. Mas é claro que as forças protecionistas e esses setores quando olham só para si mesmos prejudicam o processo como um todo. Proteger setores, como o aço, pode prejudicar todo o processo de negociação. O Brasil é um negociador importante, assim como os EUA e a União Européia. Todos temos que lutar para que haja um sistema justo. O mundo desenvolvido tem muitas vantagens. Populações melhores, mais educação, o meio-ambiente é melhor controlado. Nós, do Terceiro Mundo, não temos tanto assim. Temos um longo caminho pela frente e vários problemas sociais para dar conta. Então, se não houver maior flexibilidade dos países desenvolvidos, não há como negociar. Como o Brasil irá comprar um supercomputador dos EUA se não consegue vender suco de laranja no mercado americano?
 

ISTOÉ – A Índia está abrindo um consulado em Belo Horizonte. Qual a razão da escolha da capital mineira?
Amitava Tripathi

O consulado de São Paulo já cobre as cidades do Sul e o
Rio de Janeiro. Belo Horizonte está emergindo como uma cidade importante em certas áreas, com companhias de peso como a Vale
do Rio Doce, por exemplo. Gostaríamos de fazer negócios com a compra de pedras preciosas. Queremos também fazer parcerias com a Universidade Federal de Minas Gerais, que deseja construir um parque tecnológico. Então a Índia pode cooperar nos setores de computadores e softwares de biotecnologia.