10/12/2003 - 10:00
Está lá, na base da Estátua da Liberdade: “Dê-me os seus exaustos, seus pobres. Suas massas desnorteadas ansiosas por respirar livremente. O triste refugo de suas orlas abundantes. Mande estes, os sem-teto, marinados na tempestade, para mim. Eu ergo minha tocha fora da porta de ouro.” São versos da poetisa Emma Lazarus (1849-1887), escolhidos para o pedestal do monumento americano mais famoso do mundo. Só que, desde 11 de setembro de 2001, não se pode levar a inscrição ao pé da letra. Quem for à estátua não passará por seu portão. A atração turística mais procurada de Nova York até os ataques terroristas está fechada a visitantes. O máximo que se consegue é aportar na ilha onde foi fincada Miss Liberty – como é conhecida pelos íntimos – e andar pelo jardim. Em close-up só se verá o dedão do pé. Antes, os turistas engravidavam esta senhora de 117 anos, subindo por suas escadas até atingir a coroa de raios postada na cabeça. Mas o medo de ataques de radicais islâmicos determinou que já não é seguro permitir esse trânsito. Não há liberdade de ir e vir na estátua.
Há esperanças de que um dia se volte a penetrar, no bom sentido, a digna figura. O Serviço Nacional de Parques dos Estados Unidos fez contatos com a iniciativa privada e já imagina que conseguirá em 2004 doações de US$ 5 milhões. Essa verba tornaria possível as reformas para melhorar a segurança do monumento e repelir gente com más intenções. A empresa de cartão de créditos American Express se comprometeu a dar US$ 3 milhões e pagar para que o diretor de cinema Martin Scorsese faça um documentário sobre a estátua. Isso servirá como peça para maiores arrecadações. “A Estátua da Liberdade causou profunda impressão em meus avós, quando eles a viram pela primeira vez. Estavam à bordo do barco que os trazia como imigrantes italianos, no começo do século XX”, diz o cineasta. “Este é um símbolo querido e importante para minha família e para outros milhões de famílias de Nova York e dos Estados Unidos. Acho que Miss Liberty é, na verdade, um símbolo internacional: ela é patrimônio da humanidade”, completa.
Ele tem razão, a estátua já foi tombada pela Unesco e é patrimônio
da humanidade. Tanto que, no passado, cidadãos de várias nacionalidades a usaram como veículo para manifestações políticas.
Esses antecedentes dão força às paranóias atuais. Mais de uma
dezena de vezes o monumento foi invadido por grupos irados. Mais recentemente, em 2000, um grupo de porto-riquenhos ocupou a cabeça de Miss Liberty e hasteou sua bandeira, protestando contra o uso militar da ilha de Viéquez, em Porto Rico. Antes deles, outros seus compatriotas independentistas haviam feito o mesmo, em outubro de 1977. Em abril daquele ano, fora a vez de iranianos que reclamavam da tirania do
xá Reza Pahlevi (1919-80), que governava o Irã. Em 1971, pacifistas veteranos da guerra do Vietnã ficaram dois dias barricados na ilha.
Três anos depois, o grupo Frente de Liberação Negra pretendia
explodir o braço e a cabeça da figura para, como disse seu líder
Robert Collier, “Tornar a maldita cadela velha numa maneta sem
cabeça.” Foram todos presos antes disso. Dez pessoas, bravas com o embargo americano a Cuba, içaram o panteão cubano na coroa da imagem em abril de 1961. E por aí segue a lista de tropas de assalto.
A história oficial da estátua revela que sua gestão tem mesmo um apelo romântico revolucionário. A idéia partiu dos franceses. Quase 100 anos depois da independência americana – à qual a França deu uma tremenda ajuda –, um grupo de conspiradores jantava em Paris. Os comensais eram membros da oposição liberal ao reinado de Napoleão III. O anfitrião era o jurista Edouard Renée Léfèbvre de Laboulaye, que tecia loas à democracia e à liberdade americanas. Dali, sob os eflúvios do bom vinho nacional, surgiu o plano de presentear os Estados Unidos com um monumento que simbolizasse a liberdade. O que se queria era criar um fato político contra a tirania que Napoleão III exercia. “Não seria maravilhoso se o povo da França desse aos Estados Unidos um monumento à sua independência e, com isso, mostrasse ao governo de Napoleão que os franceses são dedicados aos conceitos de liberdades humanas?”, disse Laboulaye. E quem atesta o episódio é o escultor Frédéric-Auguste Bartholdi, participante daquela noitada e o futuro o autor da obra grandiosamente intitulada “A Liberdade Iluminando o Mundo”, que nós conhecemos como Estátua da Liberdade.
A tarefa não foi fácil. Tanto que só foi cumprida já em plena III República da França, depois da queda de Napoleão III. A inauguração de Miss Liberty se deu em 28 de outubro de 1886, no governo americano do presidente Grover Cleveland. Mas as injunções começaram mesmo logo depois da Guerra Civil dos Estados Unidos, durante a Presidência de Ulysses S. Grant, entre 1869 e 1877. Foi o próprio Bartholdi quem escolheu a ilhota no estuário do rio Hudson para ser o ponto de ancoragem de sua obra e também quem entabulou negociações com os ianques para que o presente fosse aceito. Os homenageados, entenda-se, deveriam pagar pelas fundações e base da estátua. A empreitada, anos depois, acabou saindo por US$ 100 mil. Já os franceses custeariam a escultura – que empregou 20 homens trabalhando dez horas por dia, sem folgas na semana, e ao custo da fortuna, na época, de 250 mil francos.
Até hoje tenta-se descobrir quem inspirou Bartholdi para os traços de Miss Liberty. Ele próprio disse que, em parte, foi Charlotte, sua mãe. Mas há dúvidas sobre isso. A estátua lembra muito outro monumento desenhado pelo autor e que deveria ter sido postado à beira do canal de Suez. Iria se chamar “Progresso”, ou “O Egito Iluminando a Ásia” (embora o país, como se sabe, fique na África). O projeto foi recusado pelo Pacha Ismail, que governava o país. Tratava-se de uma mulher camponesa – uma falaha, no linguajar local. A coincidência de nomes e semblantes parece irresistível. E a suprema ironia é que uma falaha árabe pode ter originado a Estátua da Liberdade, agora fechada como proteção a terroristas islâmicos. Como se não bastasse, França e EUA andam às turras na área diplomática.