Para quem vê de fora, é difícil compreender o que leva alguém a largar tudo por uma semana, enfrentar temperaturas que beiram os 40º C à sombra durante o dia e 15º C no alto dos morros pela madrugada. Caminhar, pedalar e remar por horas, às vezes dias, sem parar. Dormir uma ou no máximo duas horas por noite e encarar todo tipo de dor e desconforto físico num dos lugares mais belos e exuberantes do planeta. Mas cada um dos 164 atletas inscritos na Ecomotion Pro, a maior e mais longa corrida de aventura do País, que contou com o apoio de ISTOÉ, disputada entre o domingo 23 e o sábado 29, na bela Chapada Diamantina, na Bahia, não trocaria isso por nada. Vencer os 241 quilômetros de bicicleta, os 154 quilômetros de caminhada e os 75 quilômetros de duck (caiaque inflável), além de escalada e um “pequeno” passeio a cavalo era o desejo e a meta desses superatletas. Muitos não conseguiram. Abandonaram a prova por cansaço, acidentes ou por desentendimentos na equipe. Mas quem conseguiu chegar saiu da Chapada com a sensação de que o limite é do tamanho do sonho de cada um.

A vitória aqui é uma jóia rara, tão preciosa quanto os diamantes que fizeram a fama e a fortuna desse paraíso verde baiano. Quem a levou foi a espanhola Meridianoraid.com AXN/TAP, uma das seis estrangeiras na prova. Logo atrás vieram os brasileiros da Hertz Mamelucos, seguidos de perto pelos Oskalunga Brasil Telecom e Mitsubishi Quasar Lontra. A convite de ISTOÉ, Rafael Campos, navegador e capitão da Quasar Lontra, fez um relato diário das aventuras e perrengues, sufoco na linguagem da aventura, da equipe durante a prova (leia quadro ao lado). “Apesar de alguns pequenos problemas, o Ecomotion Pro Bahia foi um sucesso. Tivemos estrangeiros de oito nacionalidades participando e cerca de 50% das equipes terminaram a prova. É um bom índice, levando-se em consideração o grau de dificuldade da competição”, diz Said Aiach Neto, dono da Ecomotion, organizadora da prova.

Preparo – Mas o caminho entre o ponto de largada, num lindo mirante situado entre os morros do Pai Inácio e do Camelo, e a chegada em Lençóis, cidade porta de entrada da Chapada e base de apoio da
prova, é muito mais longo que os 460 quilômetros totais da
competição. A preparação começa com pelo menos dez meses de antecedência. “Durante esse período é preciso alternar exercícios de resistência, força e velocidade. São treinos duros e complexos. Mas
só assim um atleta estará apto a enfrentar as duras situações de competição”, diz Aulus Selmer, preparador físico especializado em
corridas de aventura. “Quem não gosta de sofrer não pode fazer esse tipo de esporte”, diz o neurocirurgião Clemar Correa da Silva, 45 anos, médico oficial do Ecomotion Pro.

Mas, para alguns, o sofrimento não se restringe apenas aos percalços
da competição. Na tarde da quinta-feira 27, a equipe carioca Xavante fazia uma boquinha no Bode Grill, em Lençóis, a poucos metros da comemoração espanhola. É permitido às equipes parar para refeições durante a prova. Naquela altura, ainda teriam a outra metade do percurso, pelos menos mais dois dias, para cumprir. E isso não era o pior. Sem nenhum apoio ou patrocínio, a equipe foi obrigada a rifar um relógio para completar o orçamento necessário para participar da corrida. “Com os R$ 4 mil da rifa conseguimos juntar o dinheiro para competir. Somos uma das poucas equipes do Rio aqui e não tivemos apoio de ninguém”, diz a professora Luciene Teixeira, 40 anos, integrante do grupo.

Coisas de um esporte que ainda começa a engatinhar no Brasil, mas
que não pára de ganhar adeptos. Afinal, como disse seu Inocêncio
Pereira da Silva, 67 anos, morador de Remanso, um ex-quilombo situado próximo a Lençóis, “esses moços são meio doidos, né? Mas acho que eles gostam do que fazem”. Gostam não, seu Inocêncio. Amam e não medem esforços para superar seus limites.

Domingo
Segura peão

“Começo de prova difícil. A Marina seguiu no cavalo empunhando a bandeira que seria fincada no alto do Morro do Pai Inácio. O barulho dos helicópteros de apoio assustou o bicho. Ela teve que encurtar a rédea para controlá-lo. Logo percebemos que a navegação na prova seria bem complicada, principalmente à noite e de madrugada. As trilhas não eram bem marcadas. Você estava numa e de repente ela sumia. A mata fechada só piorava a situação. Um pequeno graveto entrou no olho da Marina. Eu mesmo tirei. Nada grave. Perdemos uma hora e meia nesse trecho. Fizemos a transição para a bike em sexto lugar”“Começo de prova difícil. A Marina seguiu no cavalo empunhando a bandeira que seria fincada no alto do Morro do Pai Inácio. O barulho dos helicópteros de apoio assustou o bicho. Ela teve que encurtar a rédea para controlá-lo. Logo percebemos que a navegação na prova seria bem complicada, principalmente à noite e de madrugada. As trilhas não eram bem marcadas. Você estava numa e de repente ela sumia. A mata fechada só piorava a situação. Um pequeno graveto entrou no olho da Marina. Eu mesmo tirei. Nada grave. Perdemos uma hora e meia nesse trecho. Fizemos a transição para a bike em sexto lugar”

Segunda-feira
Sorvete na praça

“Começamos o dia no duck. Ao amanhecer me debati com um inimigo que me acompanharia durante toda a prova: o sono. Barulhinho de água, bote fofinho, passarinho cantando…Se não fossem os jatos de água que a Marina jogou no meu rosto eu dormiria. Algumas horas depois surgiu outro problema: a desidratação do Vítor. Eu e o Vinícius carregamos a bike para que ele pudesse seguir caminhando. No final do dia chegamos a Andaraí. Ganhamos sundae de chocolate e creme do motorista do nosso ônibus de apoio, que pela barba e barriga é chamado de Papai Noel. Não era Natal, mas foi um presentaço. Para não apagar, fui obrigado a tomar Coca-Cola com café. Horrível!”

Terça-feira
Cobras e marimbondos

“De madrugada, por pouco não pisei numa cascavel. Mas antes que ela nos atacasse a toquei para o mato com o bastão de trekking. Pior que a cobra era o estado do Vítor. Ele continuava desidratado. Para complicar, a Marina sentia dores no joelho direito, reflexo de uma queda boba da bike. A dor aumentou e ela chegou a chorar. Se não fossem os antiinflamatórios ela teria desistido. Mas isso não era tudo. Numa trilha estreita, o Vinícius caiu da bicicleta e começou a gritar para que todos corressem. Ele havia sido atacado por marimbondos. Apesar de tudo, estávamos em segundo, atrás dos espanhóis e com fé na vitória”

uarta-feira
Drive-thru na Chapada

“No começo da madrugada meu sono tornou-se insuportável. Não tinha mais condições de navegar. O Vinícius assumiu o posto. Num delírio, disse que havia um Mc Donald‘s no próximo posto de controle (PC). Sonhei que um amigo meu estava escolhendo uma garrafa de vinho para mim. Na Serra do Macaco eles, os marimbondos, voltaram. Dessa vez a vítima foi o Vítor. O cara gritava tanto que eu imaginei que havia sofrido uma fratura exposta. O visual era estonteante. Assim como o calor de 39º C, que quase levou o Vítor a nocaute. Fomos ultrapassados pela Hertz Mamelucos. Os espanhóis sumiram lá na frente”

Quinta-feira
Ufa! Cama e comida quente

“Nesse dia tomei dois tombos ridículos na bike. Dormi no selim da bicicleta e acordei no meio do mato. Partimos para o duck. Ao final da remada veio a má notícia. Recebemos uma penalização de 30 minutos por termos nos separado no meio da prova. Com isso, os espanhóis escaparam ainda mais e, pior, Oskalunga Brasil Telecom nos passaram. Pegamos um trecho de bike casca grossa. A trilha era muito estreita. O joelho da Marina doía muito, mas ali era impossível empurrá-la. Só queria chegar logo. Sonhava com um chuveiro, comida e cama quente. Chegamos à praça principal de Lençóis, onde terminava a prova, em quarto lugar”

Perfil
Rafael Reyes de Campos Oficial da reserva do Exército, 27 anos, formado em administração de empresas pela PUC. É praticante de corrida de aventura desde 1999, guia de rafting e socorrista. Navegador e capitão da Mitsubishi QuasarLontra. Seus companheiros de equipe são a personal trainer e namorada Marina Verdini, o advogado Víctor Teixeira e o administrador de empresas Vinícius Cruz

Pés que sofrem
Eles são tão importantes que merecem os mesmos cuidados dispensados aos pés de uma bailarina. Antes de uma prova longa é recomendável proteger as áreas mais sujeitas a bolhas com fitas do tipo silvertape ou, o ideal, com curativos almofadados e com boa aderência como o importado Second Skin. As meias devem ser de tecido sintético de duas camadas, para que uma deslize sobre a outra. É fundamental a aplicação de géis e pomadas. As medidas buscam a diminuição do atrito e do impacto dos pés com a superfície de meias e tênis. Apesar dos cuidados, não há como impedir o surgimento de bolhas. “Elas têm que ser cuidadas desde o início. É preciso limpá-las e tratá-las com anti-sépticos”, receita Clemar Correa da Silva, 45 anos, médico oficial do Ecomotion. O atleta deve ter sempre um par de tênis um ou dois números acima do que usa normalmente. “É para atenuar o impacto. Na parte final os pés incham”, diz o médico.

 

Ser corredor de aventura é…

“Superar sempre seus limites. Fazer algo que parece impossível de ser realizado”
Gabriela de Carvalho, equipe Lobo Guará

“Saber que tudo o que você deseja você pode realizar, independentemente da condição em que estiver”
Cris Carvalho, equipe Mamelucos

“Ficar um pouco mais perto dos deuses para assim ter a exata noção de quanto somos pequenos diante deles”
Cris Carvalho, equipe Mamelucos

“Ter paixão pela vida. Sentir-se vivo. É uma oportunidade única de enfrentar e vencer todos os seus demônios”
Monclair Camarota, equipe Oskalunga

“Colocar-se em situações que te dão medo e dúvida e vencê-las. É saber que você ultrapassou desafios que
outros não conseguiram”

Vítor Negrete, equipe Landscape