10/12/2003 - 10:00
As famílias são eternas, acreditam os mórmons da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. O engenheiro americano Zera Todd Staheli, 39 anos, nascido na pequena Spanish Fork, no estado de Utah, e sua mulher, Michelle Staheli, 34 anos, da vizinha Logan, juntos há 15 anos, adaptaram há três meses esse sonho para o Brasil. Era a quinta escala profissional de Todd – depois da Ucrânia, Suíça, Arábia Saudita e Inglaterra –, jovem e rigoroso executivo da multinacional Shell, onde estava havia dez anos. Duas semanas atrás, Toddy, como era conhecido, atualizou seu perfil em um site na internet, reservado a missionários mórmons, para informar que sua casa agora era o Rio de Janeiro. “Trabalho no negócio de gás natural para a Shell e por onde passo tenho visto e sentido a mão de Deus na Terra”, escreveu ele, um fanático por viagens. “Tenho quatro filhos, entre 13 e três anos, que fazem o melhor para me manter longe de problemas. Mas naqueles dias em que as exigências da família, do trabalho e da igreja podem ser deixadas de lado por um instante, uma estrada deserta, minha (moto) Harley (Davidson) e uma companhia de viagem são as minhas diversões favoritas”, viajou. Aos domingos, em um templo no Itanhangá, área de condomínios chiques na Barra da Tijuca, Todd e Michelle oravam e davam aulas de religião a crianças americanas. Queriam aprender português. “Ele tinha uma felicidade que contagiava”, conta Milton Queiroz da Paixão, o Tita, ex-jogador do Flamengo, frequentador do grupo mórmon. Os filhos de Tita eram amigos dos filhos de Todd e Michelle e queriam que se mudassem de vez para o Rio. O sonho foi apunhalado na madrugada de domingo 30 de novembro. Em sua cama, no segundo andar de uma casa de mil metros quadrados no Condomínio Porto dos Cabritos, na Barra, a “Miami carioca”, Todd e Michelle foram brutalmente assassinados num crime ainda sem autor conhecido, mas que um policial horrorizado definiu como “um assassino furioso”.
Mais um assalto com fim trágico no Rio de Janeiro? Não é o que parece. “É um dos casos mais intrigantes com os quais a polícia carioca já se deparou”, disse o chefe da Polícia Civil, Álvaro Lins. A hipótese de latrocínio (assalto seguido de morte) foi logo descartada e as investigações do duplo homicídio, já chamado de massacre da Barra, podem caminhar para um resultado surpreendente. Não foram encontrados sinais de arrombamento e nada foi roubado, nem o relógio Rolex de ouro deixado na mesinha ao lado da cama. Todd ficou desfigurado com cinco cortes profundos, quatro próximos aos olhos e um na testa, e Michelle sofreu traumatismo craniano. Os ferimentos concentrados no rosto e na cabeça de ambos são, segundo a polícia, típicos de um crime passional. O massacre foi feito com uma machadinha ou um cutelo. O assassino – ou assassinos – teria entrado na casa, ferido o casal mortalmente e deixado a cena levando apenas a arma do crime. Usando luminol, uma substância que revela traços de sangue mesmo depois de limpos, a polícia descobriu que, além da suíte, onde os travesseiros e lençóis brancos ficaram tingidos de vermelho, o único lugar com vestígios do crime é a cama da filha mais velha, de 13 anos. Foram achados três pingos de sangue. Em um depoimento informal, a jovem disse que a irmã de três anos manchara a cama ao encostar seu pijama sujo de sangue. Era um hábito da caçula acordar de madrugada e ir dormir com os pais. Naquela noite, sonolenta, teria deitado ao pé da cama, sem perceber a tragédia. Esse pijama sujo, porém, não foi achado. A adolescente também informou ter encontrado o pai com um travesseiro no rosto. Peritos disseram que isso não era possível, já que Todd, com o crânio massacrado, morreu por asfixia e apresentava um característico “cogumelo de espuma” na boca que nenhum travesseiro enxugou.
Suspeita – Laudos preliminares indicam que o casal foi golpeado entre 2h e 4h, mas os filhos disseram não ter ouvido nada. De manhã, por volta das 6h, ao ouvir o despertador tocar insistentemente, o filho de dez anos entrou no quarto e viu os pais e a irmã caçula deitados. “Por que eles estão sujos de lama?”, teria perguntado. Foi quando a irmã mais velha foi chamada e telefonou para um casal de vizinhos americanos, Jeffrey e Caroline Turner, que só então chamaram a polícia. Mesmo evitando tratá-la oficialmente como suspeita, a força especial que cuida do caso passou a investigar prioritariamente a filha mais velha de Todd e Michelle. A polícia diz que a jovem também mentiu ao negar que tivesse um namorado. “Nunca namorei”, teria dito. Foram encontradas na casa fotos dela com o rapaz e uma carta, sem data, no banheiro do quarto da menina, que mostra uma relação tensa entre mãe e filha. “São 4h da manhã”, escreve a mãe, início de uma carta de três páginas em que classifica como “insustentável” a relação com a garota. “Sei que não tenho sido uma mãe ideal, mas você também não é a filha ideal.” Outra carta, encontrada no mesmo banheiro da filha, leva a assinatura do namorado. Ele faz juras de amor e diz que faria qualquer coisa para estar ao lado da amada. A polícia investiga a possibilidade de o namorado viver no Brasil. “É um crime hediondo com uma carga de brutalidade muito grande e, muito provavelmente, teve o envolvimento de alguém próximo que conhecia a família e a casa”, diz a promotora Mônica di Piero, que conseguiu na Justiça ouvir na sexta-feira 5 os depoimentos do filho de dez anos e da adolescente de 13, antes de eles voltarem com os avós para os Estados Unidos. O casal ainda tinha um filho de oito anos. Em seu depoimento, prestado à juíza Maria Angélica Guimarães, a garota de 13 anos afirmou que foi dormir por volta de meia-noite. Ela teria passado pela porta do quarto dos pais e nada percebera de anormal. Em seguida, revelou um detalhe importante. Segundo ela, na manhã do dia seguinte, depois de encontrar os pais inconscientes, verificou que o portão eletrônico da casa estava aberto e que não precisou sequer acionar o controle remoto para o casal amigo entrar. Ela também afirmou que o alarme da casa é contra incêndio e não contra roubo. Até o fechamento desta edição, os depoimentos do casal amigo não tinham terminado.
Sem reação – Os golpes contra o casal foram desferidos com força, mas o fato de Todd e Michelle não terem reagido aos violentos golpes, como sugere suas posições na cama, indica que podem ter sido dopados antes de dormir. Um exame toxicológico ficará pronto em poucos dias. “É chocante ver uma vida interrompida de forma tão precoce e trágica”, lamentou o advogado americano Mark Taylor Petersen, que serviu com Todd em uma missão da igreja em Melbourne, na Austrália. “Esse crime não pode ficar impune.” Todd Staheli foi embalsamado no laboratório da Santa Casa de Inhaúma, na zona norte do Rio. Sua mulher, que ficou internada quatro dias, morreu na quinta-feira 4. “Foi uma violência absurda”, resumiu o médico João Pantoja, que atendeu Michelle na emergência de um hospital. “Meus filhos estão abaladíssimos, não sei nem o que dizer”, emociona-se o ex-jogador Tita. “Como pode acontecer um negócio desses?”, pergunta-se.
Ouvidos pela polícia, a empregada Auricélia dos Santos Martins e o motorista Sebastião Moura, que também é mórmon, informaram que, como sempre, foram dispensados na sexta-feira e voltariam ao trabalho na segunda-feira. O luxuoso condomínio com 50 casas, avaliadas cada uma em até R$ 2 milhões, não era tão inexpugnável assim. Havia um sistema com sete câmeras, vigilância 24 horas e cerca eletrificada em volta da casa. Naquela noite, porém, ninguém viu nada, o videocassete estava com defeito e a cerca eletrificada, desligada. Pode ser só uma série de infelizes coincidências, mas a casa não estava segura. Nos fundos da residência, sem muros ou vigilância, está a Lagoa de Marapendi. A polícia não encontrou a arma do crime, mesmo vasculhando a mansão e 600 metros quadrados da lagoa, com cinco mergulhadores do Corpo de Bombeiros. Uma machadinha foi encontrada enfeitando a parede do banheiro da filha mais velha. Uma outra, que comporia o par, não foi encontrada. Essa machadinha foi levada pela polícia à juíza. O garoto de dez anos esclareceu em seu depoimento que se trata de um suvenir comprado na Escócia e negou que houvesse duas machadinhas na casa.
Dez telefones – A polícia investiga ainda a hipótese de assassinato encomendado por motivos profissionais. Diretor da Área de Gás e Energia da Shell para o Brasil e a América Latina, Staheli tinha como uma das principais missões defender os interesses da multinacional no gasoduto Brasil–Bolívia. A Shell é sócia do gasoduto, junto com Petrobras, Enron e British Gas. A especulação foi alimentada por um depoimento informal da mesma filha mais velha, que contou à polícia ter ouvido o pai discutindo asperamente por telefone, uma semana antes do crime, com alguém em Londres. A polícia decidiu pedir a quebra de sigilo de dez telefones da casa onde o casal morava e de amigos e funcionários.
FBI aqui – A Shell não alimentou a polêmica: informou desconhecer qualquer discussão ou ameaça sofrida por seu executivo. “A Shell reitera sua confiança de que as circunstâncias do ocorrido serão esclarecidas”, diz uma nota. “O caso tem prioridade total. Ele era executivo de uma empresa importante que tem muitos investimentos no Estado”, explicou o secretário estadual de Energia, Indústria Naval e Petróleo, Wagner Victer, que enumerou para o presidente da Shell Brasil, Aldo Castelli, as providências tomadas no caso. O Consulado Geral dos Estados Unidos no Rio divulgou nota empenhando “total confiança nas autoridades brasileiras”, mas, na dúvida, dois agentes do FBI, a polícia federal americana, desembarcaram no Rio na quinta-feira 4 para acompanhar, como observadores, as investigações.
|
|