10/12/2003 - 10:00
Foi depois de uma visita ao Parque Güell, em Barcelona, concebido pela mente delirante do arquiteto catalão Antonio Gaudí, que o artista plástico pernambucano Francisco Brennand, 76 anos, teve o primeiro lampejo para a criação da Oficina Cerâmica Francisco Brennand, seu monumental templo-museu habitado por mais de duas mil figuras de cerâmica. Mas o que pouca gente sabe é que o escultor, na época com 24 anos e aluno em Paris do pintor André Lhote, descobriu Gaudí quase por acaso. Na verdade, ele estava em Barcelona vindo de Madri, para onde tinha ido com o único intuito de conhecer as telas de Velásquez no Museu do Prado. Seguiu para a capital catalã porque planejava voltar à França pelos Pirineus orientais, o que lhe possibilitaria fazer uma parada em Montpellier e ver de perto os Courbet que nem o Museu do Louvre possuía. Sem olhos para nada, exceto o mundo mágico da pintura, como anotou em seu diário inédito, com o passar dos anos Brennand acabou ficando conhecido como escultor, um dos maiores do País.
Em momento algum, no entanto, ele abandonou a antiga paixão pela pintura, feita um pouco à surdina e raramente mostrada. “Sou um escultor que tem o coração de pintor”, disse o artista a ISTOÉ no ateliê rodeado de livros de mestres dos pincéis, um enclave escondido nos imensos galpões da antiga olaria dos pais, às margens do rio Capibaribe, na Várzea, arredores do Recife. A partir da quinta-feira 11, suas telas e seus desenhos poderão ser apreciados em conjunto na exposição F.Brennand: uma obra em perspectiva, que tem curadoria de Emanoel Araújo. Trazendo 220 trabalhos, a mostra marca a inauguração da Accademia, sala contígua ao templo ao ar livre de suas esculturas singulares e cujo nome é uma homenagem ao famoso museu veneziano.
Sem intenção de ser cronológica, a mostra
cobre cinco décadas de uma produção variada. Inclui os primeiros óleos de nus dos anos 1940, pintados ainda em Paris; os desenhos mais recentes, como a série Casa das pernas, mostrando voluptuosas coxas femininas; e passa pelas Mulheres-peixes e pela belíssima coleção de meninas, feitas em pastel. Há também espaço para os desenhos de frutas e vegetais dos anos 1950 e 1960 e para as telas com o mesmo tema das décadas seguintes, de caráter mais gráfico, entre elas A jogadora de castanhas (1977). Araújo ainda selecionou os esboços do painel A Batalha dos Guararapes, os estudos dos figurinos de O auto
da Compadecida, de Ariano Suassuna, e as ilustrações do Método Paulo Freire de alfabetização. Para justificar o amplo leque de temas e assuntos, Brennand recorre a Picasso, artista que o fez enxergar a nobreza da cerâmica, vista por ele como uma arte menor até se deparar com as maiólicas do gênio espanhol. “Picasso, que foi o mais liberado de todos os artistas, tentou nos passar uma lição que dificilmente é assimilada. Eu peguei um pouco dela por causa do meu soberano desprezo pela unidade”, diz o artista. “Não importava a Picasso sair da fase azul e ir para a fase rosa, uma invenção dos críticos, e depois voltar ao desenho clássico como se fosse um Rafael ou Ingres. Ele passou a vida inteira fazendo esse jogo, para frente e para trás, com extrema liberdade.”
A mesma liberdade norteia a atual produção de óleos, expostos pela primeira vez. São adolescentes em poses extremamente delicadas. Lembram as ninfetas do pintor francês de origem polonesa Balthus (1908-2001), um dos artistas com o qual o pernambucano tem mais afinidade. Bem antes de ser reconhecido como um dos grandes pintores contemporâneos, Balthus já era um dos nomes eleitos por Brennand. Em 1952, ele teve a oportunidade de visitá-lo no seu ateliê parisiense, num episódio lembrado em detalhes pela sua memória prodigiosa. Na ocasião, Balthus pintava o quadro La chambre, com uma menina num divã, tendo ao fundo uma anã que afasta uma cortina e deixa a luz invadir o ambiente. Segundo Brennand, a modelo, que estava na janela, só se moveu para fumar malcheirosos cigarros Gauloise. “Não vi a cor dos seus olhos. Chegamos na penumbra e saímos no escuro, porque Balthus não acendeu a luz”, recorda. “Episódios como esse representam minha juventude e entram agora para a minha maturidade e velhice”, conta Brennand, provando que os grandes artistas se revelam também pela eleição de suas afinidades.