O giro do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelo Oriente Médio, iniciado na terça-feira 2 e que será encerrado nesta quarta-feira 10, além de fazer com que seja o primeiro líder brasileiro a visitar a região desde dom Pedro II, em 1871, marca a sua 17ª viagem internacional e quebra um novo recorde em termos de viagens presidenciais ao Exterior. Lula completará 180 mil km de percurso, visitando nada menos que 26 países em 60 dias, superando a movimentação de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro ano de governo. FHC também ficou no total 60 dias fora do Brasil, mas percorreu 160 mil km e visitou 14 países. E Lula ainda fará mais uma viagem internacional este ano, indo a Montevidéu, no Uruguai, para a Cúpula do Mercosul, na segunda-feira 15, somando mais 10 mil km e outro país a seu currículo.

Todo esse périplo internacional, na verdade, representa o auge da política de diplomacia presidencial, que havia sido uma das características de FHC e agora está sendo elevada a novos patamares por Lula. Quando o presidente brasileiro começa seu giro pelo Levante com uma visita à Síria, país considerado pelos EUA de George W. Bush como linha auxiliar do terrorismo, e encerra o tour pela Líbia de Muammar Kadafi, país que sofreu execração internacional durante anos também por terrorismo, o recado é claro e tem endereço certo. Primeiro, Lula mostra que o Brasil, candidato a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU, quer ser independente em aspectos políticos e que não pretende ficar atrelado a nenhum bloco. Segundo, que o maior interesse do país é abrir mercados para seus produtos e buscar parcerias comerciais.

Surpresa – A diplomacia presidencial de Lula é uma das muitas surpresas que ele mostra para quem o achava despreparado para o cargo, especialmente em comparação com o scholar e globe-trotter FHC. “Lula facilita as coisas para o nosso trabalho”, admite, satisfeita, uma alta fonte do Itamaraty. O facilitar as coisas que os diplomatas reconhecem, com satisfação, seria o inegável carisma que o antigo líder operário exerce em todo o mundo. Lula não fala inglês, não tem títulos acadêmicos, comete gafes, mas é inquestionável que ele se tornou um requisitado astro da política internacional. Diante do impacto que a figura de Lula exerce sobre governantes, empresários, personalidades e, evidentemente, nas populações dos países estrangeiros, o trabalho dos diplomatas é montar as bases técnicas para os entendimentos políticos e, na área do dinheiro, os negócios e acordos que são selados a cada visita.

A política externa de Lula se baseia em um tripé pouco usual, mas
já testado e aprovado na prática. A ponta de lança é o próprio presidente. Mas quem bola a estratégia é uma dupla formada pelo chanceler Celso Amorim e o assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Os dois, desde o começo, estabeleceram uma sintonia
de idéias que surpreendeu. Quando no Palácio do Planalto se pensa
em uma viagem internacional para Lula, os dois estruturam o “plano de vôo” e o que se pretende obter. Em seguida, o staff do Itamaraty sai a campo fazendo os contatos preliminares. Quando tudo está quase pronto, Celso Amorim vai pessoalmente aos países bater o martelo. Finalmente chega a hora da visita de Lula.

Cutucando Bush – Na viagem mais recente, e ainda em andamento, uma penca de acordos e joint-ventures entre o Brasil e os países árabes estava pronta para receber apenas as assinaturas dos líderes. Na maior parte dos casos, o Brasil sairá lucrando, pois terá conseguido novos sócios com muito dinheiro para investir e comprar. Lula sentiu o clima favorável desde o primeiro dia e foi além, ao sugerir que os países do Levante se associassem ao Brasil e ao Mercosul, formando novos blocos econômicos. E citou os exemplos do Mercosul (o ex-presidente argentino Eduardo Duhalde, escolhido presidente vitalício do Mercosul, era um dos integrantes da delegação oficial de Lula), do G-3, que inclui Mercosul, África do Sul e Índia, e do G-20, o bloco de “amotinados” do Sul que melou a reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Cancún, como casos de sucesso da união entre os mais fracos. Mas Lula não se limita a propor acordos econômicos aos parceiros em potencial. Ele não deixa escapar uma oportunidade de alfinetar os Estados Unidos e Bush, com quem, aliás, o presidente brasileiro mantém relações extremamente cordiais. Logo no começo do giro árabe, ao lado de Bashar al-Assad, filho do falecido ditador sírio Hafez al-Assad, Lula defendeu o plano alternativo de paz para a Palestina e também a devolução das colinas de Golã, ocupadas por Israel, à Síria. E, num comunicado conjunto, Lula e Assad criticaram a ocupação americana do Iraque.
 

Apesar de causarem “danos às boas relações do Brasil com Washington”, segundo o Financial Times, viagens presidenciais como esta devem continuar. Diplomatas destacam que é exatamente essa posição de independência que permite ao Brasil ampliar sua influência internacional. O episódio da reunião da Alca em Miami é considerado emblemático: o Brasil conseguiu sair do modelo rígido proposto pelos EUA para uma fórmula mais flexível.

Papel na ONU – A diplomacia presidencial de Lula tem como objetivo fundamental mostrar que o Brasil é cada vez mais capaz de ser uma voz de peso na ONU. Este ano, o País volta a integrar o Conselho de Segurança, como membro temporário. Mas o real objetivo é conseguir uma vaga permanente na ampliação que se pretende, dando novos assentos aos países desenvolvidos e aos em desenvolvimento. Para garantir seu lugar, o Brasil pode até abrir mão do poder de veto, hoje garantido aos EUA, Rússia, China, França e Reino Unido. “Não queremos ser membros permanentes simplesmente por causa do poder de veto. A permanência por si só é muito importante e tem grande influência. Não se deve esquecer que 90% das reuniões do Conselho são tomadas por consenso”, afirmou Celso Amorim. Para 2004, o alvo será a Ásia. E o primeiro país a ser visitado, em janeiro, é a Índia, parceira no G-3. Lula deverá assinar um acordo de preferências tarifárias que abrirá o mercado indiano – apesar de ter milhões de pobres, a Índia, com um bilhão de habitantes, tem setores produtivos que nos interessam e uma classe média emergente com nada menos de 300 milhões de pessoas, ávidas por consumir – e ainda garantirá o voto do país à sua pretensão no CS da ONU. Em contrapartida, o Brasil deverá apoiar pretensão igual da Índia.

Mas alguns analistas, no entanto, vêem riscos nessa ousada diplomacia lulista. “A política externa de Fernando Henrique Cardoso tinha como foco principal as relações do Brasil na América do Sul, a partir da integração do Mercosul. Nesse sentido, era mais ligada à tradição hemisférica do Itamaraty, formulada pelo Barão do Rio Branco. Já o governo Lula tem uma ambição muito maior, a de constituir uma articulação política ampla do movimento do Sul, do Terceiro Mundo”, disse a ISTOÉ o professor Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana e autor, entre outros, do livro O Corpo da Pátria. E o eixo articulador dessa política é justamente a campanha por uma cadeira permanente no CS da ONU. “O problema é que, ao transformar a América do Sul em apenas uma faceta de uma política mais ampla de articulação, o Brasil perde o foco e reduz as chances da própria integração latino-americana. A campanha pelo CS desgasta as relações com a Argentina. A política de articulação do Sul entra em conflito com os Estados Unidos. Como as bases dessa articulação do Sul são frágeis, o Brasil é obrigado a oferecer compensações aos americanos, que se manifestam em dois aspectos: flexibilidade cada vez maior do País em relação à Alca e timidez do Itamaraty em assumir iniciativas mais ousadas no plano sul-americano, como a organização de um sistema de segurança regional que substitua a OEA ou a institucionalização de relações com os países da América Latina. A ambição mundial tem como contrapartida a falta de ambição regional”, conclui Magnoli.

Ambição, contudo, é o que não falta ao governo Lula, principalmente
no plano nacional. Isso pode ser demonstrado pelo número de viagens que o presidente fez pelo Brasil em menos de um ano. Lula certamente
já conseguiu um total de viagens a que nenhum outro presidente
nem sequer chegou perto. Já fez nada menos que 48 viagens de
Brasília a outros Estados brasileiros, visitando 85 cidades. O cardápio
é variado. Das óbvias Rio e São Paulo, Lula já percorreu todas as regiões do País. Na sua viagem interna número 47, ele esteve em União dos Palmares (AL), local onde existiu o mais famoso quilombo da história brasileira (leia reportagem à pág 26). Esse périplo interno, em que Lula visita desde grandes capitais até vilarejos no interior do Nordeste ou da Amazônia, segue um modelo já testado antes em sua longa trajetória rumo à Presidência, as Caravanas da Cidadania. Como candidato ou no intervalo das eleições, Lula correu o País de alto a baixo, usando meios de transporte bem mais rústicos do que os aviões, helicópteros e carros oficiais. Mas o espírito desses tempos de desbravamento e conhecimento do Brasil continua o mesmo.