22/01/2003 - 10:00
Quando o Congresso Nacional voltar ao trabalho, em fevereiro, a comunidade dos profissionais de saúde – médicos, fisioterapeutas e psicólogos, entre outros – estará envolvida em um grande debate. O centro da discussão é um projeto de lei denominado Ato Médico, que define as competências e os limites no exercício da medicina. No formato atual, ele pode restringir o direito de diagnosticar doenças e de determinar o tratamento de um paciente aos médicos. Isso vai de encontro às regulamentações de outras profissões do setor. “Se essa lei for aprovada como está, os pacientes poderão pensar que só os médicos têm condição de examiná-los”, diz Miriam Salomão, do Conselho Federal de Nutrição.
Apresentada no final de 2002 pelo senador Geraldo Althoff (PFL-SC),
que não se candidatou a novo mandato, a proposta espera o aval da Comissão de Assuntos Sociais do Senado para ser levada ao plenário. Antes disso, porém, terá de cumprir uma etapa reservada aos temas muito polêmicos. A pedido do Conselho Nacional de Saúde (CNS),
ligado ao Ministério da Saúde, deverá ser discutida em audiências públicas ou seminários com a participação de representantes de
diversos segmentos. “Cada categoria profissional tem seus atos privativos, além de responsabilidades em comum com outras categorias. Os limites entre o comum e o privativo devem ser avaliados por
todos”, afirma o coordenador-geral do CNS, o médico sanitarista
Nelson Rodrigues dos Santos.
Esses encontros prometem ser aguerridos. Até porque será a primeira vez que os profissionais da saúde irão estudar em conjunto suas responsabilidades. Segundo Althoff, o projeto é inadiável porque a maioria das categorias ligadas à saúde já regulamentou suas atribuições. “E muitas delas adentraram em área privativa dos médicos”, comenta o senador, que é pediatra. Ele elaborou a proposta com o apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM). No entanto, a redação inicial irritou 13 conselhos profissionais e deflagrou um surto de protestos, vindos de especialistas como fisioterapeutas e biomédicos.
Um dos pontos mais polêmicos é a definição do que exatamente os médicos entendem por ato médico. “Esse conceito influi diretamente na divisão das responsabilidades e no relacionamento entre os profissionais de saúde”, explica Artur Custódio, representante dos usuários dos serviços de saúde no CNS. É aí que começa o bate-boca. O projeto de Althoff diz que ato médico é todo procedimento técnico-profissional praticado por médico e dirigido para a promoção da saúde, diagnóstico e reabilitação. As outras categorias protestaram contra a abrangência do texto. “Há a possibilidade de o projeto dar um caráter autoritário às relações de trabalho. Dá margem a pensar que, mesmo em uma equipe formada por vários profissionais, a palavra final em qualquer decisão será dada pelo médico”, diz a bióloga Noemy Tomita, presidente do Conselho Federal de Biologia. O presidente do CFM, Edson de Oliveira Andrade, defende essa posição. “Diagnosticar doenças e decidir como interferir em patologias são prerrogativas dos médicos”, justifica.
O tema é delicado. Nos últimos anos, os avanços da medicina criaram novos campos de atuação para várias especialidades. Na opinião de Andrade, essas mudanças também geraram muita confusão de papéis. “O projeto vai ajudar a recuperar a autonomia do médico, dando mais segurança ao paciente”, completa. Mas há quem acredite que vá no rumo contrário. “O Ato Médico é conservador. Propõe a centralidade, quando a tendência é a multidisciplinaridade. O prejuízo será na qualidade do atendimento”, diz Odair Furtado, presidente do Conselho Federal de Psicologia. Ele diz que hoje há maior domínio das questões do corpo e da doença por outros profissionais, que desenvolveram técnicas de intervenção e diagnóstico conforme a sua especialidade. O médico e deputado federal Florisvaldo Rosinha (PT-PR) acha que o CFM quer resguardar sua fatia no mercado. “Nesse projeto, há uma nítida intenção de colocar o médico se sobrepondo aos demais profissionais. Querem ampliar seu mercado de trabalho, em função do crescente número de profissionais no País”, assegura.
A decisão de abrir o debate é correta. O Ato Médico confronta visões diferentes de saúde e pode interferir em espaços consolidados. Prova disso é a modificação feita pelos senadores de um artigo do projeto original que reservava aos médicos chefia, direção, perícia, auditoria
e supervisão de procedimentos médicos. A redação abria brechas para
as mais variadas leituras. Estaria prejudicando, por exemplo, pessoas como a geneticista Mayana Zatz, de São Paulo. Formada em biologia,
ela dirige o Centro de Estudos do Genoma da Universidade de São Paulo, que faz pesquisas e diagnóstico de doenças genéticas. No final de novembro, Mayana enviou uma carta aos parlamentares condenando
a invasão de seu campo de atuação. “Seria absurdo classificar o aconselhamento genético como ato privativo dos médicos. Na maioria
das etapas, usam-se exames moleculares para fazer o diagnóstico”, diz. Segundo a pesquisadora, também não é necessário ser médico para conversar sobre o resultado com os casais. Mayana lembra que nos Estados Unidos existe um curso de mestrado em aconselhamento genético aberto a vários profissionais.
Com a revisão do artigo, o projeto passou a determinar que apenas os serviços em que o ato médico envolve procedimentos que só os médicos podem fazer sejam obrigatoriamente chefiados por um profissional da medicina. Mesmo assim, ainda causa protestos. “Há lugares no Brasil onde não há médicos e as pessoas recebem cuidados de outros profissionais”, diz Artur Custódio, do CNS. Isso dá uma idéia do quanto o tema precisa ser amadurecido antes de virar uma lei para todos.