Se um frequentador da Lapa fosse descrever o charmoso e eclético bairro do centro do Rio de Janeiro em poucas palavras, com certeza teria dificuldade. Desde que ganhou fama de território sagrado da boemia carioca, na década de 50, o local já acolheu muitas tribos. Primeiro foram os malandros tradicionais, com seus ternos de linho branco e chapéus panamá. Também se fixaram por lá célebres compositores e prostitutas, uma mistura vibrante explorada no desenho do submundo carioca do premiado filme Madame Satã, de Karim Ainouz. No início da década de 80, apareceram os descolados do Circo Voador, que atraiu a zona sul para inaugurar
uma nova fase do rock nacional. Atualmente, não é preciso andar
muito pelas ruas para constatar a tendência predominante do mais fervilhante point noturno do Rio: a Lapa se rendeu à cultura negra.
Por todo canto há gente usando dreadlocks (as populares tranças no estilo jamaicano) e roupas coloridas de inspiração africana. Além de recantos agitados que lembram o nova-iorquino Harlem, são muitos cursos e centros de cultura com nítido corte étnico. “Na Lapa, o público busca a variedade e a troca de vivências, criando um clima de charme único”, afirma Paulo Cesar Xavier, fundador do grupo Orunmilá e um autêntico apaixonado pelo bairro.

O grupo integra a Federação de Blocos Afro do Rio de Janeiro (Febarj). “Escolhemos o nome em homenagem a uma entidade do candomblé”, conta Cesar. Nos ensaios e apresentações, o primeiro pelotão é representado pelas dançarinas lideradas pelo coreógrafo Marquinhos, uma curiosa figura de unhas sempre coloridas e fantasia em palha incrementada por búzios. Logo atrás, os percussionistas dão um show de habilidade e sincronismo. O ritmo é contagiante e as batidas, criativas. É impossível passar pelo galpão, na rua Mem de Sá, e não sentir vontade de entrar para dançar. Os percussionistas mesclam a base africana, o tempero carioca e o autêntico hip hop.

O diretor do bloco atribui uma parcela importante do sucesso do Orunmilá ao bairro. “Aqui os frequentadores sem preconceito podem azarar, fazer amizades, dançar qualquer estilo e ainda absorver a força da cultura brasileira que pipoca nas ruas”, diz Cesar. Além do talento dos músicos e dançarinos, o público se encanta com o figurino. Os integrantes vestem batas africanas e fantasias em cores vibrantes. Segundo Cesar, a Lapa é o ponto de confluência das diferenças. E há muitos brancos seduzidos por isso. “Não há problema em misturar as raças no grupo, mas é preciso acreditar na igualdade. Integramos o movimento negro e, por isso mesmo, somos contra qualquer espécie de discriminação”, concilia o fundador do bloco.

Os adeptos do look afro têm no bairro um espaço antenado com as últimas tendências. A cabeleireira baiana Idalice Bastos, 50 anos, que atende por Dai, é dona do salão Afro Dai, primeiro especializado em cortes africanos do Rio. Além dos diversos tipos de cortes, como as tranças nagô e os dreadlocks, oferece cursos de maquiagem para pele negra. Há 35 anos, Dai inventa cortes inusitados que exaltam a beleza negra. O salão é decorado com objetos trazidos de viagens à Àfrica
e sua tesoura é embalada pelo autêntico suingue black. “Viajo sempre para a África em busca de novidades da estética negra. No Brasil só
há maquiagem para mulato claro.” Há tantos anos trabalhando no
bairro, Dai o define de forma objetiva: “A Àfrica é aqui.” Além da autenticidade do ambiente, a visita frequente de clientes vips como
Lecy Brandão, Djavan e Zezé Motta atrai público. A mais assídua
é a nova ministra de Assistência e Promoção Social, Benedita da
Silva, amiga há 30 anos da dona da casa.

Na sexta-feira à tarde, o salão fica lotado. É hora de cuidar do visual para a balada mais quente do Rio. Os “bailes charme” são os mais disputados na Lapa. Nas pistas, o que mais se vê são tranças sofisticadas, roupas cintilantes, óculos escuros e os famosos “passinhos”, ensaiados exaustivamente durante a semana em academias ou mesmo nas ruas. Não dá para entrar em um baile sem arriscar uma coreografia. E é bom treinar antes, pois os frequentadores assíduos deixam os novatos de queixo caído. A tradição começou no Cordão Bola Preta, na Cinelândia, a 300 metros dos Arcos da Lapa, e já transformou a Lapa em uma referência para os adeptos do estilo musical.

A herança africana também pode ser apreciada no gingado de Eraldo Teixeira da Silva, 46 anos, o Mestre Arerê de Angola. Professor de capoeira desde 1974, o mestre conta que a dança surgiu no Brasil agregando aspectos das religiões africanas e do cristianismo. “Esse sincretismo criou a ritualidade da capoeira. Nas músicas, ao mesmo tempo que o negro carrega patuás para quebrar mandingas, se ajoelha ao pé da cruz para rezar.” As aulas, sempre disputadas por jovens de diversos bairros da cidade, acontecem em uma construção antiga na rua Mem de Sá, 33. “Às vezes organizo roda de capoeira em frente aos Arcos. Colocamos um samba-de-roda, e a garotada que passa na rua canta junto.” O professor lembra que o local foi virando um point, originando o que chamam hoje de corredor cultural. “Aqui há uma energia muito forte. Quem conhece o bairro nunca mais é o mesmo. Na loucura desse lugar, você viaja sem usar drogas”, brinca Arerê. Além de dar aulas, o mestre, que também é compositor tetracampeão do carnaval do Rio, acalenta um antigo sonho. “Quero conhecer a Àfrica.”

Criado em 2001, o bloco Dalailata é um movimento que bate o tambor
em favor da preservação ambiental. Para confeccionar os instrumentos
e as fantasias, os músicos só usam materiais encontrados no lixo. Os ensaios são na Fundição Progresso, herdeira do vanguardismo do Circo Voador. Quem puxa o bloco da esperança por dias melhores é a percussionista Regina Café, responsável pelo som do Dalailata, uma mistura de ritmos como o samba, o maracatu e o reggae. “Nasci em
uma família de músicos e aprendi percussão aos sete anos. Militei no movimento negro e utilizo a música, alguns vídeos e muita conversa
para ensinar os meninos a valorizarem sua raça.”

Essas atividades já salvaram da marginalidade alguns jovens que vinham circulando sem rumo pelo centro do Rio. Só no bairro vizinho de Santa Tereza existem 14 favelas. Alguns dos adolescentes que hoje se expressam pela arte africana já atuaram no comércio de drogas no próprio bairro. “Ao entrar em contato com sua origens, o jovem resgata suas referências. Assim, a recuperação é mais fácil”, afirma Regina Café. O mais quente point do Rio mostra que não está antenado só com a África, mas também com as necessidades sociais do Brasil