O sono acabou. O ex-beatle John Lennon determinou isso. Desde a madrugada do dia 8 de dezembro de 1980, os habitantes do edifício The Dakota, em Manhattan, passaram a enfrentar noites em claro no último mês de cada ano. A data relembra o assassinato do cantor e compositor pelo fã desequilibrado Mark Chapman. Nesta semana se completa um quarto de século em que os moradores do prédio, na esquina da rua 72 com a avenida Central Park West, são forçados à insônia. A condição é provocada pelos milhares de peregrinos que acorrem ao local do crime para prestar homenagem ao ídolo caído no local. Transformado em memorial fúnebre, o endereço é engolfado por vozes chorosas e, pior, corais desafinados da canção Imagine. Não há quem pregue o olho naquelas freguesias durante estas ocasiões. O efeito colateral dessa devoção exaustiva é sofrido pelos inquilinos, vizinhos da viúva Yoko Ono – ela própria diz que prefere “dormir em outro local” durante o período da invasão de carpideiras. Os que não seguem o seu exemplo têm de padecer a indignidade de enfrentar a malta nas ruas, para entrar num condomínio cuja taxa de manutenção pode chegar a US$ 3.500 mensais (sem direito a garagem). A condição é uma triste sina para um imóvel que é marco da arquitetura da cidade. As linhas góticas de seu desenho foram tão influentes que acabaram gerando o apelido de Nova York: Gotham City. E mais: sua construção determinou o desenvolvimento de toda a região. Mas a história acumulada desde 1884, ano da inauguração do residencial chique, acabou por transformá-lo num castelo maldito.

As paredes de 81,12 cm do The Dakota, antes do fantasma de Lennon, já abrigaram Frankenstein e a Múmia Assassina – ou, pelo menos, o ator Boris Karloff, que interpretou esses monstros no cinema. Também serviu de moradia para o Diabo e de maternidade para seu filho – Diabo Jr. – no filme O bebê de Rosemary (1968), do diretor polonês Roman Polanski. O destino do edifício foi definitivamente selado depois disso. É verdade que as gárgulas e figuras demoníacas que servem de goteiras, cercas e ornamentos ao imóvel ajudaram muito nessa percepção. Mas não foram os poltergeists ou o barulho do arrastar de correntes – que, dizem as más línguas, são efeitos especiais fixos no condomínio – que interromperam peremptoriamente o sono dos moradores. O que mais assusta os inquilinos são aqueles que a cantora Roberta Flack, ex-habitante do lugar, chama de “Os zumbis de Lennon”. É verdade que o pico das peregrinações ocorre na primeira semana de dezembro, mas a devoção transcorre durante todo o ano, ainda que com menos vigor. Isso foi o que acabou obrigando a senhora Flack a vender seu belo apartamento por meros US$ 2,3 milhões – uma ninharia, considerando o valor atual do mesmo apartamento (algo em torno de US$ 4 milhões).

Fotografias – “Se eu ganhasse um centavo de cada pessoa que me pergunta sobre John Lennon ou quer tirar fotografia desta porta de entrada, estaria rico. Mas não compraria um apartamento aqui: o endereço é muito visado”, diz o porteiro Sam (que não revela o sobrenome, tentando um anonimato inútil, para um dos homens mais fotografados do planeta). Caso ganhasse o proverbial centavo de cada romeiro, Sam talvez conseguisse mesmo comprar o imóvel. Isso porque a comissão de condomínio – a banca toda poderosa que aprova os futuros inquilinos – não tem nada contra ele. A mesma sorte não abençoou o casal de atores Melanie Griffith e Antonio Banderas, que tentou adquirir – há alguns anos – um apartamento no valor de US$ 3,5 milhões. Ambos foram rechaçados pelo “board”. “Não queremos outro episódio do tipo John Lennon aqui. Com a fama de Melanie e Banderas, infelizmente é possível que outro louco resolva cometer novo crime”, diz o apresentador Maury Povich, membro da comissão e, ele próprio, jurado de morte por críticos de televisão.

O prédio começou a ser sonhado por Edward Clark – advogado herdeiro da fortuna da família Singer, das máquinas de costura – por volta de 1878. Em sua visão, a área em frente ao novo Central Park deveria ser desenvolvida a partir de um marco arquitetônico. Seria um aglomerado de mansões verticais, que atrairia os endinheirados. Baseado num conceito parisiense de condomínio de luxo, o arquiteto Henry Hardenbergh, o mesmo que desenhou o Plaza Hotel, a alguns quarteirões dali, esboçou uma estrutura quadrada para 60 apartamentos em nove andares, com pátio interno – contendo fonte e jardim –, dando acesso a quatro colunas de residências com entradas separadas. Ao todo perfazem 65 suítes e 623 quartos, a maioria com lareiras com aberturas de dois metros de altura. Pisos de mármore e tetos trabalhadíssimos, em carvalho e afrescos feitos a óleo. Janelões de três metros de altura – algumas chegando a cinco metros – e pé-direito de sete metros.

A visão urbanística de Clark, porém, esbarrava no ceticismo popular. Já se sabia que, em termos de negócios imobiliários, a locação é fundamental. E o prédio ficava tão distante de tudo na Manhattan da época, que o povo apelidou a obra de “Dakota”. O nome pegou, mas Clark não se deu por ofendido e assimilou o batismo. Tanto que mandou cravar na fachada neogótica o rosto de um índio sioux. Ao abrir as portas em 1884, o castelo já era um sucesso, embora isolado nas vastidões de uma terra de ninguém. As construções seguintes remediaram essa solidão. Desde então, o The Dakota serviu de moradia para celebridades como o maestro Leonard Bernstein, o ator e músico José Ferrer, a atriz e cantora Judy Garland, o autor William Inge, a comediante Gilda Radner e, claro, o senhor Karloff, entre outros.

Caminhada – O casal Lennon e Ono comprou a propriedade em 1975, mas somente estabeleceu residência um ano depois. Pagou cerca de US$ 800 mil por um apartamento de quatro dormitórios e duas suítes. John e Yoko gostavam de caminhar pelo Central Park, entrando pela rua 72, numa área que, depois da morte do ex-beatle, foi batizada de Strawberry Fields – em homenagem a sua composição homônima. Nesse ponto foi cravado no chão um marco com a palavra “Imagine”, título da famosa canção pacifista de Lennon. E são os acordes, geralmente pessimamente executados, desta obra que ecoam pelas paredes sombrias do The Dakota, todo santo mês de dezembro. Durma com um barulho desses.