O Comitê Nacional para Refugiados (Conare) reuniu-se a toque de caixa na quinta-feira 29 para varrer um problema para bem longe. Com os votos dos ministérios da Justiça, das Relações Exteriores e do chefe da Polícia Federal, o Conare decidiu mandar a cantora mexicana Gloria Trevi de volta para seu país. Junto com ela, sua assistente Maria Raquenel, a Mari Boquitas, e o empresário Sergio Andrade. A cantora provocou um vexame internacional no Brasil. Acusada de corrupção de menores no México, Gloria Trevi está há quase dois anos encarcerada em Brasília e acabou engravidando sob a guarda da PF, com fortes suspeitas de que tenha sido violentada por policiais. Ela garante que não queria engravidar, não fez a inseminação artificial alegada pela Polícia Federal nem praticou sexo consensual. “Eu não fui prostituta na Polícia Federal”, afirmou em entrevista exclusiva a ISTOÉ no presídio da Papuda, na capital. Gloria contou o que o Conare não quis ouvir: ela sabe demais. Uma das mais populares artistas de seu país, ela afirma que Ricardo Salinas Pliego, dono da TV Azteca e integrante do clã Salinas, que já governou o México, comanda um esquema de remessa ilegal de dinheiro para paraísos fiscais.

“Artistas importantes do México que trabalham na emissora dele têm conta nas Ilhas Cayman”, afirma Gloria. Em 1996, ao ser convidada para estrelar uma novela, ouviu do dono da emissora uma proposta indecente: receberia US$ 800 mil, sendo US$ 300 mil no contrato e os outros US$ 500 mil depositados no nome de um laranja no paraíso fiscal das Ilhas Cayman. Ela também denuncia a pressão sobre o governo brasileiro da embaixadora do México no Brasil, Cecília Soto, pela extradição. Quando candidata a um cargo eletivo em seu país, Cecília Soto teria chamado a cantora para a campanha, mas ela não aceitou.

“Não vamos deixar varrerem a Gloria para debaixo do tapete”, garante Nelson Pellegrino (PT-BA), presidente da Comissão de Direitos Humanos. Na quarta-feira 28, deputados ouviram a prisioneira dizer que foi violentada, seguidas vezes, por um homem influente na PF. “Foi um policial. Com o cargo de delegado”, afirma Luíz Eduardo Greenhalg (PT-SP). Os deputados Fernando Gabeira (PT-RJ), Ana Corso (PT-RS) e Bispo Rodrigues (PL-RJ) também estiveram com Gloria. Numa primeira sindicância, a PF tentou emplacar uma teoria ridícula: inseminação artesanal a partir do sêmen do assaltante Marcelo Borelli. Gloria teria usado um aplicador vaginal. A segunda sindicância da PF tenta ressuscitar a versão com o depoimento de uma ex-presa, chamada Ieda, que dividiu a cela com Gloria e garante ter recebido dela um estoque de aplicadores vaginais. Para fazer crochê. A moça os teria guardado como lembrança. Roberta Menuzzo, outra ex-presa, também ficou na cela com Gloria e acusou um delegado, que conseguiu uma liminar na Justiça para impedir a divulgação de seu nome (leia quadro à pag. 32), de ter tido relações sexuais com a cantora. Roberta nem sequer foi chamada a depor. Estes são os principais trechos da entrevista.

ISTOÉ – Você tem medo do quê?
Gloria Trevi – Eu tenho vivido aqui no Brasil apavorada porque todos sabem que fiquei grávida na cadeia. Esquecem a situação humana e o que eu, Sérgio e Maria estamos sofrendo. São quase dois anos presos numa cela comum, que não é sequer separada das celas dos homens. Nas celas especiais, puseram policiais acusados de ter cometido crimes. Temos que fazer nossas necessidades num buraco, uma coisa muito degradante para uma mulher. Agora mesmo, com sete meses de gravidez, tenho que fazer como se fosse um cachorro. Estamos sofrendo uma injustiça muito grande. Estou indignada com o México. Fui uma pessoa que trabalhou honradamente, sempre paguei todos os meus impostos. Acho inacreditável que o México não tenha a consciência, que autoridades corruptas não tenham a consciência de fazer respeitar as leis. Muitas autoridades no México, muitos juízes, muitos ministros, têm sido covardes para fazer respeitar a Constituição mexicana. Nossa prisão aqui é totalmente arbitrária, totalmente ilegal, totalmente injusta. Fomos presos no Brasil acusados de corrupção de menores. Quero deixar muito claro que essa acusação é somente da parte dos pais de uma mulher (Karina Yapor) que hoje tem 19 anos, que nos seus primeiros depoimentos nos inocentou e depois mudou a versão pressionada por meus inimigos.

ISTOÉ – Por que o México quer tanto que você volte? O que você sabe que transforma sua volta num risco à sua vida?
Gloria – Vou te falar o que eu sei. Sempre foi muito comentado que o dono de uma tevê muito importante no México, Ricardo Salinas Pliego, da TV Azteca, recebeu dinheiro de Raul Salinas de Gortari para comprar a tevê, que a concorrência para a compra foi uma farsa porque tinha ficado no poder de pessoas que tinham amizade com o presidente e que estavam recebendo dinheiro do irmão dele (Raul Salinas). O próprio Ricardo Salinas admitiu ter recebido milhões de dólares de Raul Salinas de Gortari, um homem que esteve na cadeia acusado de tráfico de drogas e também da provável participação intelectual na morte do candidato à Presidência (pelo PRI) Luis Donaldo Colossio. Eu escutava toda essa conversa, mas nunca estive ligada a essas pessoas corruptas. Até que um dia o dono da TV Azteca tentou me contratar para o canal dele. Eu não aceitava as condições porque pedia uma quantidade de dinheiro que ele não queria dar. Até que um dia ele mandou me chamar e eu estava acompanhada de uma pessoa que também sofreu acusações sem nenhum fundamento, a Gabriela Olguin. Ele pediu que eu ficasse sozinha com ele, mas não aceitei. Ele já tinha tentado um assédio, mas eu sabia me defender. Ele falou que queria muito ficar comigo na TV Azteca. Pedi US$ 1 milhão para fazer uma novela e ele falou que ia me dar por contrato US$ 300 mil. Ele falou: “Escuta, queremos tanto que você fique conosco que, além desses US$ 300 mil por contrato, vou colocar US$ 500 mil nas contas Cayman e não tem que pagar nenhum imposto. Me fale no nome de quem quer que eu abra.” Isso foi em 1996. Meu coração bateu a mil por hora porque me lembrei de assassinatos, de narcotráfico… Ele falava e eu via nele uma cara de lobo feroz. Eu não tinha problema em pagar imposto, queria pagar meus impostos para poder continuar falando o que queria nas minhas canções, criticando o governo e a sociedade. Sei que artistas importantes do México que trabalham na emissora dele têm conta nas Ilhas Cayman. Um apresentador de tevê tão importante quanto Paco Stanley foi assassinado como se fosse um narcotraficante. Depois, quando assinei com a concorrente dele, ele iniciou uma perseguição contra mim – tanto pessoal, por eu ter recusado seu convite, como profissional. Falando besteiras, sem provas, sem fundamento, sem nada. Políticos utilizam ajuda de Ricardo Salinas Pliego para lavar dinheiro nesses paraísos fiscais. E por isso eles acobertam Ricardo Salinas e me atacam. Eu estou indefesa no México. Cometi um erro muito grande de não ter respondido a ele, mas fui aconselhada pela Televisa para não responder. Mas nunca pensei que tudo isso fosse tão longe.

ISTOÉ – Você está denunciando um esquema de remessa ilegal de dinheiro para paraísos fiscais. Dinheiro do narcotráfico, de negócios ilícitos…
Gloria – Do povo. Dinheiro roubado pelos políticos. O Ricardo Salinas é dono também de 400 lojas de vendas de móveis no interior do país e da concessão da Western Union, uma empresa que manda dinheiro para Estados Unidos e México. Fui parar no meio disso tudo. Por isso estou com medo, pelas nossas vidas. Me explica por que continuamos presos? Por que, se somos culpados, as autoridades mexicanas têm que mentir para as autoridades do Brasil? O governo de Chihuahua (autor do pedido de extradição) engana o Supremo Tribunal Federal brasileiro para conseguir uma extradição. O governo passado fez muita baixaria, muita sujeira, para conseguir nossa prisão. E o governo atual não tem caráter para desfazer isso, fica com medo da TV Azteca.

ISTOÉ – O Conare rejeitou seu pedido de refúgio político. Resta apelar ao ministro da Justiça, Aloysio Nunes Ferreira. O que você tem a dizer a ele?
Gloria – Estou muito esperançosa de que aqui no Brasil os direitos humanos e as leis sejam respeitadas e o Brasil tenha a dignidade de fazer respeitar sua soberania, sem ficar com uma venda para não ver que pessoas, embora estrangeiras, estão sendo injustiçadas por nosso país. Estou pedindo auxílio a um país que considero muito menos corrupto que o México. Ministro, estamos com muito medo de voltar para o México e de que, além de sermos injustiçados como temos sido até agora, sejamos mortos. A Justiça brasileira não pode ser cúmplice do que está acontecendo agora. Queria te dizer tantas coisas, ministro. Estou apavorada. Se não existe uma perseguição política por que a embaixadora (do México no Brasil, Cecília Soto) está tão empenhada em que sejamos levados para o México? Todo mundo fala que não existem provas e que os testemunhos são contraditórios. Pessoas são torturadas e mortas em Chihuahua, para onde querem nos levar. Ministro, no México não se respeitam os direitos humanos. Se ele acredita nisso, quero abrir os olhos dele. Que pergunte para Digna Ochoa, ativista de direitos humanos, assassinada dia 19 de outubro no México, se os direitos humanos no país existem. Nada foi feito, nem vai ser feito. É um desrespeito que não posso acreditar que o Brasil aceite. Tenho medo que situações políticas tenham influenciado a Comissão de Refugiados. Essa é uma organização humanitária, não política. Ficamos sabendo da reunião (do Conare, na quinta-feira 29) pela televisão. Dói ver que estamos sendo usados tanto lá no México como aqui no Brasil. Não somos moeda de câmbio, não somos troca para que as relações exteriores entre Brasil e México fiquem bem. Só pedimos um pouco de justiça, que o Brasil seja independente, que nos respeite, meu Deus! Fico sentida demais com essa atitude, essa perseguição da embaixadora. Logicamente ela está sendo mandada pelo governo do México.

ISTOÉ – Você conhece pessoalmente a embaixadora Cecília Soto?
Gloria – Estão fazendo uma perseguição que não fazem com nenhum extraditado. Pergunte aos ministros (do STF) se eles recebem visitas de embaixadores quando estão analisando um caso. Não recebem, e isso é uma prova. E, em vez de eles (ministros) tomarem isso como uma prova, o tomam como uma oportunidade para fazer relações exteriores. Essa senhora, quando eu era uma artista famosa, quando estava no topo, pediu para eu ajudar na campanha dela porque estava se candidatando a presidente. Ela pediu aos meus representantes que eu participasse da campanha dela. Fiz uma apresentação na minha terra e ela se apresentou no meu concerto e pediu permissão aos meus assessores para subir no palco. Eu, por atenção, a recebi no palco e pedi aplausos do público. Mas não fiz proselitismo. Talvez ela tenha ficado magoada comigo porque não pedi voto.

ISTOÉ – Sua gravidez dentro da carceragem da PF tumultuou sua tentativa de permanecer no Brasil. Você quis engravidar?
Gloria – O jeito como exploram essa situação me magoa. Esquecem a injustiça que estamos sofrendo. Já fui roubada. Tudo o que eu ganhei foi tirado de mim. Tudo. Vivo agora com o que meu pai me manda. Para mim é uma vergonha. Por que tenho 33 anos e gostaria de estar ajudando eles. Estou fazendo meu pré-natal agora, no sétimo mês, na rede pública porque não quero ser uma carga ainda mais pesada para minha família. O governo do México não fez nada para defender meu patrimônio, não moveu um dedo. É incrível que eu tenha que ver meu país cheio de miséria e corrupção, que não tenha nem direito a um pouco de justiça, enquanto essa pessoa ninguém investiga porque está protegida por ser dona de uma tevê. Eu não sou ninguém, mas ela é menos do que eu. Estou com muito medo e suplicando ao Brasil que esqueça a situação do meu filho. Não o estou usando para ficar aqui. Quando fiquei grávida, fiquei calada, não queria que ninguém soubesse, nem quis fazer escândalo. Eu não quero ter problemas com ninguém.

ISTOÉ – Você, portanto, não queria engravidar.
Gloria – Não queria engravidar nessa situação. Sou mulher e desejo muito ter uma família, conhecer alguém, amar, ser amada, ter filhos, ser feliz, como uma pessoa normal. Mas não numa situação dessa, uma situação muito humilhante…

ISTOÉ – Não existia nenhum plano seu para engravidar?
Gloria – Não, não existe.

ISTOÉ – Você fez inseminação artificial, como diz a PF?
Gloria – É o que mais convém para eles. Olha o que vou te falar agora: não quero problemas. Eles que falem o que quiserem. Se isso deixa algumas pessoas tranquilas e essas pessoas me deixam tranquila… Não quero causar danos a ninguém.

ISTOÉ – A PF apresentou uma testemunha, Ieda, sua ex-colega de cela, que diz que você usava aplicadores vaginais e até cedeu alguns para ela fazer crochê…
Gloria – São coisas absurdas. Na verdade, não entendo. Nunca tratei mal a nenhuma pessoa que passou pela minha cela. Você sabia que a Ieda tentou vender uma entrevista falando de mim no México? Mas a PF está tomando uma colher do seu próprio remédio. Eles jogaram na minha cela, eu, uma pessoa em processo de extradição que eles deviam resguardar, traficantes, estelionatários, o que fosse. Quando fomos presas no Rio, Maria e eu ficamos de castigo numa cela sem luz, sem água, para ver qual era o nosso comportamento. Passamos por esse constrangimento. Mas a Polícia Federal não se preocupou em jogar na minha cela narcotraficantes confessas, estelionatárias perigosas, entre outras. Nós estamos indefesos.

ISTOÉ – Você foi estuprada por policiais dentro da carceragem da PF?
Gloria – Estou apavorada, estou chorando. Não gosto nem sequer da palavra estupro, nem de violência, nem de nada disso, porque não quero que uma criança inocente nasça sob preconceito. Não quero que meu filho não tenha direito à privacidade.

ISTOÉ – Você sofreu violência ou coação sexual em troca de favores?
Gloria – Quero que fique claro que eu não fui prostituta na Polícia Federal. Eu não fui. Não estou falando isso com desprezo das pessoas que têm essa profissão. Favores? Na Polícia Federal? Eu não tive. A menos que seja um favor estar viva. Qualquer outra coisa, eu não tive. Se tivesse oportunidade de usar o telefone todos os dias, talvez já tivesse defendido minha inocência, talvez não estivesse nessa miséria. Estou apavorada.

ISTOÉ – A Comissão de Direitos Humanos informou ter ouvido de você que um homem influente na carceragem da PF a violentou seguidas vezes.

Gloria – Não quero falar nada antes que seja uma situação legal. Meu filho é mais importante do que o bom nome de qualquer instituição.