Há três anos presidindo o Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequena Empresa (Sebrae), o advogado alagoano Sérgio Moreira tem alguns traços que o diferenciam da grande maioria de seus antecessores, nomeados em função de acomodações políticas. Apesar do mandato de deputado federal entre 1983 e 1987, ele tem perfil de executivo. É detestado por nove entre dez empreiteiros do País por conta dos cortes de custos que fez nas polpudas obras da Chesf, a estatal federal responsável pela geração e distribuição de energia no Nordeste, que presidiu em 1993. Tem político que também não gosta de Moreira “porque não ajuda os amigos”. Talvez pelo tipo de tarefa que o Palácio do Planalto costuma atribuir a este tucano de 41 anos ligado ao grupo do falecido governador de São Paulo, Mário Covas, e ex-coordenador da campanha de Fernando Henrique em Alagoas. Coube a ele organizar o programa de distribuição das cestas básicas emergenciais na seca de abril de 1998, que golpeava severamente a popularidade do presidente. A missão era tirar a seca da mídia. No Sebrae, está empenhado em demonstrar o descaso histórico em que estão mergulhados os brasileiros que sobrevivem à custa de 15 milhões de pequenos negócios. E também o potencial que esta multidão representa. Um estudo recente, elaborado pelas áreas de pesquisa da London Business School, de Londres, e do Bobson College, de Boston, mostra que, em 21 países pesquisados, o Brasil tem o povo mais empreendedor. De cada oito brasileiros, um está tocando (bem ou mal) negócio próprio. Nos Estados Unidos, o segundo colocado, a relação é de dez para um. Em último surge o Japão, onde, de cada 100 pessoas, apenas uma administra seu pequeno empreendimento. As pesquisas mostram igualmente que por falta de preparo o brasileiro é o que mais fracassa. Para Moreira, também falta compromisso: “Deveria interessar à elite brasileira o desenvolvimento da pequena produção.” De olho na campanha, o diretor-presidente do Sebrae quer vender a causa das micro e pequenas como uma produtiva bandeira eleitoral. Em entrevista a ISTOÉ, ele fez uma detalhada avaliação dos problemas deste segmento gigantesco e anônimo e suas tentativas de arrancá-lo do atoleiro.

ISTOÉ – O sr. cita uma pesquisa que coloca o Brasil como o campeão do empreendimento. Não seria por falta de opção?
Sérgio Moreira

Em parte. Nós temos vocação empreendedora. E os vocacionados que encontram apoio mínimo nas suas localidades dão certo. Uma outra parte empreende por estratégia de sobrevivência. Não consegue emprego, vai empreender. Como não está capacitada, falha. Também somos campeões nisso: 56% das empresas que abrem não duram mais do que três anos. Nos Estados Unidos, a taxa é de 40%.

ISTOÉ – Como mudar isso?
Sérgio Moreira

Uma certa taxa de fechamento é aceitável. É da natureza da pequena empresa abrir e fechar. Muitas vezes o propósito é explorar um negócio de ocasião. Temos que trabalhar o problema das que fracassam por falta de capacitação, de ambiente favorável.

ISTOÉ – O Brasil é hostil para o pequeno empresário?
Sérgio Moreira

O Brasil é o país das oportunidades. Temos alta mobilidade social e econômica, mas a legislação tributária, as exigências burocráticas, a falta de crédito e a falta de uma política sistêmica para tratar o empreendedorismo levam às altas taxas de insucesso.

ISTOÉ – Se pudessem, muitos microempresários não prefeririam ter carteira assinada?
Sérgio Moreira

Parte deles sim, até porque a nossa cultura valoriza o emprego formal, é uma herança histórica. Aqui, tudo tinha dono e nós nos habituamos a esperar tudo do Estado ou do grande proprietário. Não precisa ser assim. Nos Estados Unidos havia um país para ser colonizado, a terra não tinha dono. O mesmo se deu no Nordeste da Itália. Isso resultou em um modelo que privilegia as pequenas empresas. Mas há mudanças. Hoje, as pessoas querem ser empreendedoras.

ISTOÉ – Como a burocracia atrapalha?
Sérgio Moreira

Levam-se 45 dias para abrir uma empresa. É muito tempo. O empreendedor é submetido a tantas exigências legais que acaba contratando um despachante. Paga no mínimo R$ 500. Fazendo as contas, são R$ 6 bilhões que ficam na informalidade nesses 45 dias. Isso é custo Brasil. Mas dá para romper. Temos um projeto com o Ministério do Desenvolvimento em algumas capitais que permite a abertura ou o encerramento de uma pequena empresa em 48 horas. Racionalizamos a burocracia e reunimos todas as instituições que têm a ver com a abertura de uma empresa no mesmo espaço físico, como se fosse uma fábrica.

ISTOÉ – E os tributos?
Sérgio Moreira

O Simples federal é um belo exemplo de avanço. Legalizou três milhões de empresas. Mas pode ser ampliado. Precisamos gerar uma cultura de simplificação tributária nos Estados e municípios, permitindo que mais empresas se legalizem. São 6,7 milhões de empresas formais. Poderiam ser 15 milhões.

ISTOÉ – A falta de crédito para os pequenos não é um problema mundial?
Sérgio Moreira

Não. Na Bolívia, com uma economia do tamanho da do Pará, o microcrédito empresta R$ 350 milhões. Aqui, são R$ 200 milhões. Nos Estados Unidos, há uma rede de dez mil pequenos bancos privados especializada em emprestar para a pequena empresa. Aqui no Brasil, os capitalistas não têm a cultura de se arriscar. Só se faz isso por exceção. São 13 milhões de brasileiros sem acesso ao crédito, pessoas produtivas que tocam mais de 9,5 milhões de pequenos negócios. Somos um país de excluídos do sistema bancário.

ISTOÉ – Por quê?
Sérgio Moreira

A cultura da inflação moldou os bancos para não correrem risco. Eles se habituaram a só emprestar para o governo, para grandes empresas ou operar com aquele crédito supergarantido, como o financiamento de automóvel, em que você empenha até a sua avó. Ao mesmo tempo, houve um aumento dos empréstimos para as pessoas físicas. Significa que os bancos financiam a pequena empresa através do cheque especial. É um crime. Os bancos brasileiros têm de ter responsabilidade social.

ISTOÉ – Como obrigar os bancos a emprestar?
Sérgio Moreira

Trabalhamos de forma indutora. Temos algumas iniciativas de sucesso, como o fundo de aval, no qual o Sebrae oferece garantias para pequenos empresários apresentarem em empréstimos bancários, e os fundos de capital de risco, que aplicam em ações de pequenas empresas nascentes. Já são cinco fundos. O mais antigo deles, em seis meses, rendeu 20 vezes o investimento.

ISTOÉ – As pesquisas mostram que a produtividade das grandes empresas é oito vezes maior que a das pequenas. O microempresário brasileiro é incompetente?
Sérgio Moreira

Não. O pior é a falta de capacitação. Como emprega mais mão-de-obra, a pequena empresa sempre será menos produtiva que a grande. A distância entre as duas é enorme. Essa relação poderia cair à metade. Às vezes, o microempresário até sabe produzir bem, mas não sabe gerir o negócio, o que leva à alta mortalidade.

ISTOÉ – O que um microempresário precisa para ter sucesso?
Sérgio Moreira

Precisa de visão estratégica, planejar bem e sem improviso, ter obstinação e rumo. Precisa ter conhecimento do que é uma empresa, entender um pouco de contabilidade, saber olhar um fluxo de caixa, saber alguma coisa sobre recursos humanos. Tem que saber cooperar com outros microempresários para comprar melhor e ser mais competitivo. Isso vale para qualquer setor.

ISTOÉ – Não é muita exigência para um trabalhador que foi compelido para este setor por falta de opção?
Sérgio Moreira

É possível transmitir conhecimento às mais diversas camadas sociais. É óbvio que o conhecimento passado para a classe universitária tem que ser padronizado para o pequeno empreendedor que só teve acesso ao ensino fundamental. São duas clientelas diferentes. Isso não é obstáculo para o sucesso, desde que a abordagem não seja paternalista. É deixar claro para as pessoas que elas são os agentes da mudança. Na Rocinha, o primeiro passo foi capacitar as pessoas para um ofício: a costura. Depois, fazer isso coletivamente para ser competitivo nas compras. Hoje, a Associação das Mulheres da Rocinha está produzindo para consumidoras de alta renda. As madames estão comprando roupas de lá.

ISTOÉ – Então dá para reproduzir um exemplo americano em locais pobres, com população semi-analfabeta e faminta?
Sérgio Moreira

É possível, real e existente. Em Santa Cruz do Capibaribe, Pernambuco, no semi-árido nordestino, há um pólo de confecção de roupa íntima que não existia há duas décadas. Começou com produções caseiras e agora se prepara para exportar. Temos um programa de cooperação com o governo italiano e com o BID para o desenvolvimento de um centro produtor na Paraíba. São mais de 800 produtores de sapato que vão fabricar produtos de alta qualidade, a US$ 50 o par. Tem uma comunidade no sertão do Nordeste, na beira do São Francisco, produzindo pimentão orgânico para o mercado de Londres.

ISTOÉ – O sr. não estaria usando exceções como exemplos?
Sérgio Moreira

Não. O atraso é nossa maior oportunidade. No Paraná, planta-se mandioca com altíssima produtividade. São 25 toneladas por hectare. Mas, em algumas regiões, ainda se planta como os índios faziam há 500 anos, com uma produtividade de quatro toneladas por hectare. Se melhorarmos essa produtividade em 200%, a renda do produtor duplica.

ISTOÉ – Não é lamentável que esse atraso seja usado como argumento?
Sérgio Moreira

Eu uso a oportunidade como argumento. Sabemos do atraso, mas também sabemos das soluções para isso. Em 2002, que é um ano eleitoral, esperamos colocar a pequena e a microempresa na agenda. Garanto que o prefeito que se preocupar em gerar empregos e oportunidades a partir dos pequenos negócios terá sucesso eleitoral.

ISTOÉ – Se o sucesso é tão certo, por que as microempresas estão nessa indigência produtiva?
Sérgio Moreira

Temos cinco séculos de políticas voltadas para o grande. Grandes obras, políticas voltadas para grandes empresas, para a grande propriedade, para o grande Estado. O Brasil é o país que mais cresceu nos últimos 100 anos. No entanto, produziu uma sociedade de muita desigualdade. Se elevarmos a produtividade do segmento das micro e pequenas empresas em 150%, o que é factível, cresceremos o equivalente a uma Argentina em dez anos. São números expressivos para a nação. É um processo de desenvolvimento que já nasce distributivo.

ISTOÉ – O governo não foi omisso?
Sérgio Moreira

Não é só uma questão de governo. Também é uma questão da iniciativa privada e da sociedade civil. Deveria interessar à elite brasileira o desenvolvimento da pequena produção. O grande proprietário da fazenda de algodão no Mato Grosso deveria contribuir para que a costureira tivesse uma boa máquina de costura, boa capacitação, acesso a uma orientação de design para fazer um produto de qualidade.

ISTOÉ – Não é pedir demais?
Sérgio Moreira

Nos Estados Unidos, o paraíso do liberalismo econômico, o governo é obrigado, por lei, a reservar 23% das suas compras para pequenas empresas. A Nasa radicalizou: as pequenas fornecem 35% de suas compras. Também se preocupou em capacitar seus fornecedores. Todo grande empresário brasileiro deveria fazer o mesmo.

ISTOÉ – O Sebrae identifica o artesanato como segmento importante. Mas é também um dos mais amadores. Como desenvolvê-lo?
Sérgio Moreira

Na Itália, além das grandes confederações de indústrias, do comércio, tem a do artesanato. Não se pensa em desenvolver nenhuma política pública sem ouvir esta confederação. Existe uma exigência no mercado por produtos personalizados, artesanais. É assim com o presunto de Parma, o mármore de Carrara, o cristal de Murano. Temos a marca da identidade local e precisamos ter cada vez mais qualidade. No Brasil, são 8,5 milhões de artesãos, ou 2,3% do PIB brasileiro. É quase o que representa a indústria automobilística, responsável por uns 3% do PIB.

ISTOÉ – Essa identidade não está justamente nas regiões mais atrasadas, onde falta qualidade?
Sérgio Moreira

A cerâmica marajoara, com toda a sua história de três mil anos, tem uma marca. Mas também precisamos priorizar a orientação sobre o design, fazendo com que profissionais de escolas técnicas e universidades atendam esse universo da produção brasileira. Outro exemplo: nós somos o país que mais desperdiça madeira no mundo. Para mudar isso, basta orientar o carpinteiro a usar a madeira adequada, a cortá-la, dar noções de estética. Isso é design, não é tecnologia. Boa parte dos nossos problemas é de baixa exigência tecnológica. Por isso representa uma oportunidade de desenvolvimento.

ISTOÉ – Há espaço para produtos artesanais e exclusivos?
Sérgio Moreira

Cada vez mais. Em Paragominas, Pará, há um pólo produtor de móveis saindo de um modelo extrativista para vender poucos artefatos de madeira de alto valor. É o pobre produzindo para o rico, o que fará com que ele seja o rico de amanhã.