19/11/2003 - 10:00
Foi apenas um dia de reunião e negociações entre ministros do Mercosul e da União Européia, na quarta-feira 12 em Bruxelas. No final, os dois blocos tinham avançado de modo surpreendente no rumo de um poderoso acordo de livre comércio que já tem até data para entrar em vigor: outubro de 2004, três meses antes do prazo marcado para a estréia da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), em janeiro de 2005. O Programa de Trabalho de Bruxelas, apresentado com satisfação pelo chanceler brasileiro Celso Amorim, em nome de seus pares do Mercosul, e pelos comissários europeus para o Comércio, Pascal Lamy, e Assuntos Externos, Chris Patten, no final do dia, surpreendeu porque, além de já falar em negociações sobre “textos comuns” na próxima reunião marcada para dezembro, determina que os temas agrícolas e seus polêmicos subsídios entrem em discussão imediatamente, ao contrário da Alca, na qual a agricultura virou tabu. “É importante que tenha sido reconhecida a prioridade para o tema agrícola”, comemorou Celso Amorim. Mas quem se mostrou mais entusiasmado com um futuro acordo Mercosul-UE foi Patten. “Ninguém deve subestimar a importância que atribuímos à conclusão de um ambicioso acordo com o Mercosul”, afirmou sorridente.
Para o Brasil e seus parceiros de continente, o sucesso de Bruxelas chegou na melhor hora possível: uma semana antes do início de uma reunião de ministros dos 34 países que, teoricamente, formarão a Alca. Com o cronograma de Bruxelas na mão – que prevê para julho a conclusão do texto do acordo de livre comércio –, a turma do Mercosul entrará na agenda em Miami, na quinta-feira 20, como um jogador que chega na mesa de pôquer não com um ás escondido na manga, mas com um baralho inteiro, pronto a dominar o jogo.
A reunião, que pela vontade dos americanos seria para colocar a Alca em velocidade máxima, deverá ser marcada pela adoção de um novo – e mais pobre – modelo para a área de livre comércio. Com a decisão do Brasil em não discutir mais a questão dos bilionários subsídios que os EUA destinam a seus agricultores, mandando a questão para a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Alca caminha para ser, na verdade, uma míni Alca. Sem a agricultura na pauta, o Brasil e a turma do Mercosul não querem mais discutir temas polêmicos, como compras governamentais, investimentos e propriedade intelectual. O modelo joga areia nos planos americanos, que querem que a Alca represente caminho livre para suas empresas dominarem as concorrências de governo, ao mesmo tempo em que não admitem quebra de patentes de medicamentos – como o Brasil e a Europa defendem no caso da Aids, por exemplo.
Com isso, a Alca pode ficar limitada ao acesso a mercados, pelo menos no caso do Mercosul, que deixa para discutir na OMC agricultura, compras governamentais, investimentos e patentes, por exemplo. Pode também virar uma salada, com países menores e mais pobres, sem o desenvolvimento de Brasil e Argentina, aceitando o que os americanos querem impor em troca de vender seus poucos produtos. E mesmo limitada ao comércio de bens e mercadorias, a questão não é simples, pois terá que haver uma série de acordos sobre cada um dos itens em disputa. O que os EUA sabem é que não podem abrir mão do Brasil e da Argentina. Sem os dois e os companheiros do Mercosul, em vez de Alca, os americanos ficariam com uma espécie de Naftão, acrescentando muito pouca coisa ao Nafta, bloco que formam com Canadá e México.
Modelos à parte, o fato é que o período mais crítico das relações Brasil-Estados Unidos, em que parecia haver uma espécie de diálogo de surdos, foi superado com as reuniões realizadas na semana passada na capital americana. O embaixador do Brasil em Washington, Rubens Barbosa, disse que poderá haver uma evolução nas negociações da Alca em Miami. “Houve um diálogo sobre como avançar nas negociações que resultaram em um conjunto de idéias que poderá significar um avanço positivo e realmente concreto nas negociações”, disse o diplomata. Seu chefe, o chanceler Celso Amorim, também se revelou mais animado com as perspectivas para Miami, ao sair de uma reunião na quinta-feira 13 com o presidente Lula e os ministros Luiz Furlan (Desenvolvimento), Roberto Rodrigues (Agricultura), Antônio Palocci (Fazenda) e Guido Mantega (Planejamento). “O que acertamos é algo que preserva os interesses brasileiros”, disse. “Fiquei encorajado pelas conversas porque nosso elemento de flexibilidade foi compreendido. A Alca pode ser ampla, desde que seja equilibrada não só para um lado”, afirmou Amorim, que pela primeira vez considerou factível publicamente o horizonte de janeiro de 2005 para entrada em operação da área de livre comércio.
A semana começou com a Organização Mundial do Comércio (OMC) anunciando a condenação dos EUA por causa de sobretaxas ao aço produzido pelos europeus, brasileiros, russos e chineses, entre outros. As taxas, que a OMC decretou serem ilegais, foram determinadas no ano passado pelo presidente George W. Bush para beneficiar as siderúrgicas americanas obsoletas, mas grandes contribuintes de sua campanha presidencial. Ajudando as empresas, Bush conseguiu ainda que seu partido, o Republicano, ganhasse as eleições parlamentares. O problema da estratégia de Bush é que as indústrias que dependem do aço estão reclamando do preço 30% maior da matéria-prima. Se Bush desobedecer à OMC, fica sujeito a retaliações econômicas por parte dos países interessados nas exportações, como o Brasil. Nada menos que US$ 2,2 bilhões seriam rateados entre os autores da ação, que poderão bloquear exportações americanas a seus países no valor correspondente.
Conflito – No que toca à Alca, as taxas de Bush transformaram o setor siderúrgico em outro ponto de conflito, especialmente com o Brasil. Em contraste, Mercosul e Europa não têm problemas no setor, que é uma das áreas incluídas no texto comum a ser fechado em dezembro. Outra área é a indústria automobilística, que já tem pronto para ser passado a limpo em dezembro o rascunho de um acordo automotivo. A própria decisão brasileira de colocar a agricultura fora das discussões da Alca, saudada por muitos como “um progresso”, tem outra leitura, segundo técnicos do governo. O Brasil não vai questionar os subsídios americanos em relação ao preço adotado no mercado dos EUA. Mas, em mercados onde produtos agrícolas do Mercosul e dos EUA concorrem, será perfeitamente possível que os sul-americanos encontrem formas diretas e indiretas de ajudar seus agricultores a baixar o preço de venda para o Exterior.
Talvez por tudo isso o secretário de Comércio dos EUA, Robert Zoellick, tenha tido reações tão curiosas como na quarta-feira, quando, depois de elogiar a posição brasileira de deixar a agricultura de lado, pediu ajuda aos países latino-americanos. “Formem uma coalização latina para o comércio e pressionem os congressistas americanos no sentido de que aprovem a Alca”, afirmou, para uma platéia surpresa. Ele deve saber do que está falando. No ano que vem, George W. Bush terá que enfrentar uma eleição presidencial. Os parlamentares também irão em busca de novo mandato e, normalmente, tendem a ser mais protecionistas na defesa “dos empregos americanos para os americanos”. A Alca pode emperrar mesmo é em casa.
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