Nada de sentenças pesadas e condenações extremas. Na quarta-feira, 12 no Royal Court of Justice, espécie de suprema corte de Londres, a ordem era celebrar. O local foi escolhido para o lançamento do Calendário Pirelli 2004. Luxuosa, a cerimônia de celebração dos 40 anos da folhinha mais famosa do mundo começou com um saboroso jantar por volta das 21h e terminou depois da meia-moite com baforadas de charutos, por entre as imponentes colunas do prédio. As estrelas da noite, disputando com a beleza dos enormes pés-direitos do lugar, eram o fotógrafo inglês Nick Knight, 47 anos, a surpreendente modelo sudanesa Alek Wek e outras beldades escolhidas para estampar o calendário do próximo ano.

Ao contrário das edições anteriores, o The cal 2004 tem tanto de arte gráfica quanto de fotografia. A fusão do trabalho de Knight – que clicou as modelos durante oito dias num estúdio em Londres – com o projeto gráfico do diretor de arte Peter Saville criou um efeito inusitado, muito mais sensual e onírico, do que claramente sexy. Tudo em perfeita sintonia com a evolução da fotografia na era da digitalização. Mas a inversão, ou melhor dizendo, a trangressão de valores não pára por aí. Famoso por provocar até os homens mais castos, o Calendário 2004 será, pela primeira vez, pautado na visão feminina da sensualidade. Isso porque, assim que foi convidado para fazer o trabalho, Knight decidiu consultar estrelas de renome internacional antes de escolher o que seria seu tema.

Perguntou a 14 mulheres, entre elas Catherine Deneuve, Bjork,
Courtney Love, Isabella Rosselini e Liv Tyler, de que forma gostariam
de ver a sensualidade feminina retratada. O resultado da pesquisa, cheio de borrões e mistérios, como num sonho, faz desta edição do Pirelli a mais surrealista de todas. “Não posso dizer que artista pautou qual foto porque acho que este é um dos charmes das imagens. Em cada uma há um segredo e uma história para decifrar”, explica Knight. “Só o que digo
é que entre os desejos e devaneios dessas mulheres há um, em especial, que foi sutilmente retratado no mês de maio.” Quem olha a foto da modelo holandesa Esther De Jong, envolta em uma espécie de vendaval de flores vermelhas, nota facilmente as curvas de uma grávida, mas o
tal segredo a que Knight se refere vai além. “Isso foi feito a partir do desejo de se ver recebendo sexo oral no oitavo mês de gravidez”, entrega o fotógrafo. Chocante e ousada, a proposta se harmoniza com
a evolução dos padrões de beleza contada, folha por folha, pela Pirelli, desde o seu primeiro calendário.

Apesar de a marca ter origem e matriz italianas, a primeira versão do calendário nasceu em Londres, 40 anos atrás. Isso porque em 1993, em busca de uma nova estratégia de marketing para cativar a clientela, a filial inglesa lançou uma folhinha promocional. Deu tão certo que no ano seguinte a matriz decidiu transformá-la em algo fixo. Nascia, então, em 1964 – sob as lentes do fotógrafo Robert Freeman, famoso por capturar as melhores imagens dos Beatles – o calendário Pirelli, tal como ele é conhecido hoje, distribuído para clientes especiais, colecionadores e formadores de opinião. De lá pra cá muita coisa aconteceu e a história do calendário pode ser dividida em três fases. A primeira, de 1964 a 1974, foi uma espécie de juventude transviada do The cal. Era a década dos Beatles, do rock, do look mod, da minissaia e de movimentos pacifistas contra a guerra do Vietnã. A moda era transgressora como boa leitura de seu tempo. Fotógrafos começavam a quebrar protocolos do mundinho fashion. Harry Pecanotti, por exemplo, roubou, em 1969, a imagem natural das modelos, sem poses, algo até então inusitada em catálogos de moda. Toda essa efervescência criativa apontava uma carreira promissora, que foi, no entanto, bruscamente interrompida.

Com a guerra do Kippur, a crise do petróleo golpeou a economia mundial e acertou em
cheio a Pirelli. Resultado: nada de calendários entre 1975 e 1983. Com a retomada da economia em 1984, iniciou-se o segundo
período da história do The cal, que se estendeu por mais dez anos. Naquele ano, o fotógrafo Uwe Ommer revalorizou o principal produto da Pirelli ao clicar rastros de pneus ao lado de belas modelos nas Bahamas. E, em 1987, o fotógrafo Terrence Donovan criou o primeiro calendário inteiramente dedicado às belezas negras. Entre elas figurava a top Naomi Campbell, com apenas 16 anos. No ano seguinte, foi clicado o primeiro homem da história do calendário. Em 1990, em homenagem aos jogos olímpicos, veio a primeira edição em preto-e-branco.

A terceira e última fase do The cal teve início em 1994 – com o boom
das tops Cindy Crawford e Kate Moss – e se estende até os dias de hoje. Em 1995, o fotógrafo Richard Avedon se inspirou nas quatro estações do ano e saiu na frente no quesito “piração visual”, com mega-hairs, vendavais e coloridos que só mais tarde fariam parte do processo de digitalização das imagens. Merecem destaque também nessa última década os calendários de 2000, 2001, 2002 e 2003. O primeiro, fotografado em Nova York, por Annie Leibovitz, é o mais poético da vida do folhetim, com tons pastel e imagens que lembram a delicadeza das bailarinas. No ano seguinte, foi a vez das brasileiras. Gisele Bündchen, Mariana Weickert, Fernanda Tavares e Ana Cláudia Michels, foram clicadas em Nápoles, na Itália, pelo peruano Mario Testino. Em 2002, ainda sob a nuvem de terror dissipada pelo atentado contra os Estados Unidos, as fotos são em sua maioria escuras e tristes. Finalmente, no ano passado, a lenda de Ulisses foi retratada por Bruce Weber com especial destaque para a modelo brasileira Isabelli Fontana.

Passado o frisson do lançamento da edição 2004 do The cal, agora começam as especulações acerca do que a Pirelli está aprontando para 2005. Durante a festa na Royal Court of Justice comentava-se que o Rio de Janeiro será o cenário das próximas fotos. O diretor-geral da Pirelli Pneus, Francesco Gori, prefere não falar sobre o assunto. “O sigilo faz parte do contrato do calendário”, diz. Mas não nega a simpatia da empresa pelo Brasil. “O País é líder de mercado. Passou, há um ou dois anos, da segunda para primeira maior nação compradora de pneus Pirelli. E o Rio de Janeiro é um lugar belíssimo.” A aposta está lançada.

 

Modelo de consciência

São bastasse o fato de ser uma das únicas modelos na história a fazer três edições do Calendário Pirelli (1999, 2000 e 2004), a sudanesa Alek Wek, roubou a cena no lançamento do The cal do próximo ano. Quando a mestre-de-cerimônias do evento, a apresentada da MTV Europa Cris Baker teve a infeliz idéia de perguntar como a bela se sentia quando voltava para “sua tribo no Sudão”, Alek rebateu: “Voltar para o meu país, e não para minha tribo, não é tão divertido como pode parecer. É duro e triste”, disse a modelo, que trocou o Sudão pela Inglaterra aos 14 anos, fugindo da guerra civil. “Mas tenho a consciência tranquila porque faço minha parte ajudando crianças carentes. Duro deve ser dormir com o peso de não fazer nada. Ser feliz para mim é ajudar e dormir bem”, concluiu.