07/12/2005 - 10:00
O número 174, sinônimo da tragédia urbana carioca, foi sucedido na última semana pelo 350, símbolo da mais recente ação de traficantes contra a cidade, dessa vez um ato terrorista sem precedentes, digno de Beirute, Cabul e Bagdá. 174 era a linha do ônibus seqüestrado há cinco anos e meio no Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, drama que terminou com a morte do bandido e da professora Geísa Gonçalves. Transmitido ao vivo, o fato causou revolta, virou filme e entrou para a extensa galeria da violência no Rio. Na escalada de ataques do tráfico – na cidade que já convive com balas perdidas, fechamento de vias expressas e tiroteio em túneis –, o impensável aconteceu. Às 22h30 da terça-feira 29 de novembro, na altura de Brás de Pina, na zona norte, o ônibus da linha 350, que transportava trabalhadores e estudantes de volta para casa, foi incendiado por traficantes armados. Depois de jogarem gasolina no assoalho do veículo e em cima das pessoas, fecharam as portas e atearam fogo. Cinco pessoas morreram – foram queimadas vivas –, entre elas a menina Vitória, de um ano e um mês, e a mãe, Wânia da Lúcia Barbosa, auxiliar de limpeza de 36 anos. O saldo da chacina: cinco mortos, 14 feridos, alguns em estado gravíssimo, e uma cidade perplexa. O caso teve repercussão internacional – CNN, Clarín, Reuters, EFE, AP. Tudo isso às vésperas do verão, ápice do turismo no Rio, e a um ano e meio de a cidade sediar os Jogos Pan-americanos.
Diante de um ato hediondo e covarde, as razões parecem importar menos. Mas o que se seguiu merece destaque. O ônibus 350 (Passeio–Irajá) foi incendiado por 12 traficantes do Morro da Fé, na Penha, zona norte da cidade, uma das áreas controladas pelo grupo criminoso Comando Vermelho (CV). Tinham decidido vingar a morte de um bandido pela PM, ocorrida na tarde daquele dia. Numa cidade onde os crimes contra os pobres, cometidos na periferia, costumam repercutir menos do que aqueles que atingem a elite, o massacre do 350 causou uma comoção necessária – e talvez não esperada pelos bandidos.
Audácia – O governo do Estado mandou 200 policiais subirem o morro com blindados atrás dos marginais. Quando o confronto parecia inevitável, o inesperado. No início da madrugada, chefes do CV ligaram para a Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) e avisaram: tinham encontrado, julgado e executado a tiros de escopeta e fuzil quatro responsáveis pelo incêndio do 350. Um quinto estava sendo caçado. “Taí os quatro que queimaram o ônibus. Nós do CV não aceitamos ato de terrorismo”, dizia um cartaz deixado em um carro abandonado com quatro corpos no porta-malas – uma espécie de nota oficial do poder paralelo. O secretário de Segurança Pública, Marcelo Itagiba, reagiu indignado. “Não existe bandido bom”, disse.
“Quando se mata, incendeia e queima com a
finalidade de assustar e atemorizar, trata-se de terrorismo”, sentenciou o presidente do Tribunal de Justiça, desembargador Sérgio Cavallieri Filho, reclassificando o atual patamar da violência carioca. Especialistas em terrorismo e estratégia vêem semelhanças entre o que está acontecendo no Rio com o chamado “terrorismo disseminado” praticado em países árabes.
“Nesses lugares, os terroristas tentam cercear a vontade de luta da população-alvo”, explica o general da reserva Carlos Eduardo Jansen, que comandou as Forças Armadas no Rio durante a Conferência Rio 92 – último mega-evento realizado na cidade. “Um ato terrorista tem a finalidade de submeter o moral da população”, ensina. “Isso ultrapassa todas as ações de violência que a cidade já viu”, aponta o presidente da OAB-RJ, Octávio Gomes. “O atentado muda o foco da guerra”, faz coro o sociólogo Rubem César Fernandes, coordenador da ONG Viva Rio. O governo do Estado classifica o episódio como uma “barbárie”, mas não como um ato terrorista.
O incêndio do 350 se soma ao de outros 300 ônibus queimados nos últimos cinco anos no Rio. Só este ano, 73 ônibus foram incendiados ou depredados. Em todos os casos, os ônibus estavam vazios ou os passageiros eram retirados. Até agora. Segundo o relato de sobreviventes, a tragédia só não foi maior porque um jovem, Igor dos Santos Pereira, conseguiu abrir uma das portas do ônibus à força, permitindo a saída de vários passageiros. “Nem tive tempo de pensar. Meu namorado me puxou e saí correndo com ele. Senti minha sandália derreter no pé”, contou, aterrorizada, Dominique de Jesus, que sofreu queimaduras nos pés.
Um dos casos mais graves é o da pedagoga Viviane de Souza Eusébio, 21 anos, que teve metade do corpo queimado. Ela precisará fazer enxertos de pele. Todos se lembram dos gritos de Wânia, corpo jogado sob o da filha Vitória, enquanto as chamas lambiam todo o veículo. “Abram a porta, pelo amor de Deus! Minha filha é uma criança!”, implorava. As duas morreram Rogério de Oliveira Mendes, 27 anos, pai de Vitória e marido de Wânia, está internado com 45% do corpo queimado. Eles desceriam dois pontos adiante. Estavam felizes com a pequena casa recém-construída em Brás de Pina e com a filha, que começava a dar os primeiros passos.