Um é ídolo do futebol e tetracampeão do mundo, fundador de uma ONG na área da infância. O outro, um empresário que passou a se dedicar a projetos sociais e criou instituições como a Fundação Abrinq e o Instituto Ethos. Hoje, o ex-jogador Raí, presidente da Fundação Gol de Letra, e o ex-assessor especial da Presidência da República Oded Grajew estão juntos à frente de uma campanha pela regulamentação da Lei do Aprendiz que garantirá, a cada dois anos, a inserção de dois milhões de jovens no mercado de trabalho.

A lei foi sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em dezembro de 2000 e obriga empresas de médio e grande porte a contratar adolescentes e jovens de 14 a 24 anos, como aprendizes. Há cinco anos, no entanto, aguarda-se a regulamentação da lei, o que depende de um decreto presidencial. O governo não tem dado explicações sobre a razão pela qual não é elaborado o tal decreto. “Perdemos a paciência. Vamos protestar e fazer o máximo para constranger”, diz Grajew, que deixou o governo Lula no início de 2004. “Se a lei não for regulamentada, posso até acampar em frente ao Palácio do Planalto”, ameaça.

Raí e Grajew organizaram, com outras entidades e artistas, uma manifestação no dia 27, a partir das 11 horas, no Anhangabaú, em São Paulo. E propõem que todos usem roupa branca nesse dia. Na quarta-feira 30, irão em romaria a Brasília. “Se houver uma mobilização dos jovens e as pessoas puderem ver que teve um resultado, isso vai dar mais esperança”, prevê Raí.

ISTOÉ – Por que a Lei do Aprendiz não foi regulamentada?
Raí e Oded Grajew

Ela precisa ser especificada, saber como vai funcionar e como vai ser fiscalizada. Mas, até hoje, quase cinco anos, ainda não foi regulamentada. E queremos saber por quê. É um absurdo. É uma lei que compromete grandes e médias empresas com oportunidade para os jovens ingressarem na sociedade. Tanto em termos de educação quanto de aprendizado de uma profissão e remuneração. Prefiro nem saber os motivos de não sair a regulamentação, porque são absurdos. Só podemos entender como incompetência ou falta
de vontade política.

ISTOÉ – Que interesses essa lei contraria?
Raí e Oded Grajew

A obrigação de contratar aprendizes significa um custo muito pequeno. Não acredito que esse seja o motivo, pois o benefício é muito grande.

ISTOÉ – Houve um lobby contrário na época da aprovação?
Raí e Oded Grajew

Raí – Foi a primeira pergunta que também fiz sobre o assunto. Não dá para
entender por que não houve a regulamentação já que é uma medida de impacto
que trará benefícios a curto prazo para uma faixa etária muito vulnerável. E essa
faixa será um trampolim para quem vai construir o País. Nessa área, infelizmente,
é onde fica a marginalidade.

Oded – Quando o presidente Lula assumiu e me chamou para ser assessor especial do governo, minha função era mobilizar a sociedade e, principalmente, a classe empresarial em torno dos programas sociais. Os governos têm os seus orçamentos, mas a sociedade também conta com inúmeros recursos. E não é isso o que está em falta no Brasil. O problema é que nosso país é um dos campeões mundiais em desigualdade social. O grande desafio é fazer com que recursos possam fluir de quem tem para quem não tem. O Brasil possui todos os meios necessários para acabar com suas mazelas sociais. Não é um país africano, onde se olha e não se vê nada. Para que as coisas aconteçam é preciso sensibilidade, vontade política e competência. Se cada empresa analisar quantos jovens pode adotar, sem quebrar, toda essa juventude que está aí sem estudar, sem trabalhar e sem renda terá uma oportunidade.

ISTOÉ – O sr. tem falado com o presidente Lula?
Raí e Oded Grajew

Tenho, mas em encontros e solenidades. Parece até que o governo
vai começar a se mexer. Mas é um problema sério quando um partido se torna governo e aí os outros viram inimigos. Parece que qualquer coisa que se faz é contra o governo. Vários movimentos sociais têm críticas a fazer, mas e não fazem, porque acham que pode parecer que estão contra ou porque têm amigos no poder. Sou amigo, mas se a lei não for regulamentada posso até acampar na frente do Palácio do Planalto.

ISTOÉ – sse assunto especificamente foi discutido com o presidente?
Raí e Oded Grajew

Eu disse ao Lula, quando estava lá, que tínhamos muitas coisas a fazer. E uma questão fundamental era dar oportunidade para a juventude. Se quisermos construir um país melhor, temos que olhar para quem vem por aí. Lembrei ao presidente que essa lei já estava aí, que não era dele, mas era importante regulamentá-la. Ele chamou o Jaques Wagner, então ministro do Trabalho, que se comprometeu rapidamente a levar adiante a regulamentação. Isso foi em janeiro de 2003. Aí, o Wagner mandou para a Casa Civil. Logo depois, ele deixou o Ministério do Trabalho. Então, veio o Ricardo Berzoini, que também se comprometeu a fazer. Mas, em seguida, disse que o José Dirceu (então ministro da Casa Civil) havia sentado em cima, que não havia liberado e que o Ministério do Trabalho teria proposto uma regulamentação incorreta juridicamente. Aí, voltou para o Berzoini, que mandou novamente para o Dirceu. Depois, o Dirceu saiu e entrou a Dilma Rousseff (atual ministra da Casa Civil). E também o novo ministro do Trabalho, Luiz Marinho, que antes fazia pressão pela lei, disse que não consegue tirar o projeto da Casa Civil. Enfim, a pergunta tem de ser feita para o presidente Lula, o Jaques Wagner, o Ricardo Berzoini, o Luiz Marinho e a Dilma. Nós cansamos de perguntar e resolvemos agir.

ISTOÉ – Há divergências sobre a lei entre os empresários?
Raí e Oded Grajew

A idéia é todos apoiarem. As entidades empresariais estão muito tímidas ainda quanto ao que poderiam executar. Mas as ações na área de responsabilidade social, por outro lado, estão crescendo, como o Instituto Ethos pode comprovar, com mais de mil empresas associadas.

ISTOÉ – Se não há lobby empresarial contra, só há a questão política…
Raí e Oded Grajew

Se o Lula falar amanhã que tem que sair esse negócio, aí sai. Pelo visto, vamos ter de recorrer a métodos heterodoxos, como na época do governo FHC, quando juntamos uma série de empresários e fomos ao Palácio do Planalto, já que o governo se dispunha a proibir o trabalho infantil nas usinas de açúcar e álcool e era o único comprador desses produtos naquela época, pois eram subsidiados. Então, ficamos na frente do Planalto com uma faixa com a inscrição: “É uma vergonha. O governo subsidia o trabalho infantil.” Isso surtiu efeito e assinaram a regulamentação. Agora, queremos de novo mobilizar a sociedade. Vamos constranger as pessoas. Pensamos isso antes de tudo o que aconteceu na França, onde existem problemas com jovens de periferia. O mesmo pode acontecer aqui, já que não se dá oportunidades a eles.

ISTOÉ – Há risco de uma revolta igual?
Raí e Oded Grajew

Oded – O que estamos vendo é que a falta de respostas do governo leva a sociedade a adotar outro tipo de postura. Na Bahia, um bispo fez greve de fome para reclamar da transposição do São Francisco. Um ecologista morreu em Mato Grosso do Sul porque não conseguia ser ouvido. Agora, começa uma discussão sobre a questão das usinas de álcool no Pantanal. Há muita reclamação também pelo fato de o governo tirar dinheiro das creches. Também estamos perdendo a paciência, embora busquemos ações positivas. Mas outros vão para a marginalidade, para a radicalização.
Raí – Essa campanha pela regulamentação é a oportunidade de um reaprendizado do jovem em busca da participação e pela esperança, diante de tudo o que aconteceu recentemente no País. Passamos por um dos maiores escândalos da história e não ocorreu uma reação popular. Isso me impressionou muito. Se houver uma mobilização dos jovens e as pessoas puderem ver que teve um resultado, que trouxe medidas práticas, que o seu vizinho começou a trabalhar como aprendiz, isso vai dar mais esperanças. Essa mobilização por uma causa concreta é importante nesse momento político. Lá na França teve a revolta dos jovens, mas havia outros problemas também, como imigração, preconceito racial e apartheid.

ISTOÉ – Essa lei combate o trabalho infantil?
Raí e Oded Grajew

Oded – As crianças que trabalham largam a escola ou estudam mal, porque é muito difícil compatibilizar as duas coisas. E vão crescendo, viram adolescentes e depois adultos e quando procuram emprego não encontram porque não têm qualificação. É só entrar em qualquer penitenciária brasileira e ver que 95% dos detentos são ex-trabalhadores infantis. Com a Lei do Aprendiz, porém, se cria a oportunidade de o adolescente trabalhar, continuar a estudar e ingressar na sociedade.
Raí – Esse paralelo com a situação da França pode ajudar no início de uma mobilização pacífica e lúdica, envolvendo pessoas do teatro, das escola de samba, das instituições para apoiar as reivindicações que faremos lá em Brasília.

ISTOÉ – Não há um desconhecimento sobre essa lei?
Raí e Oded Grajew

Oded – Sim, muitos empresários ainda desconhecem o fato de que o jovem pode ser aprendiz e aprender uma profissão, atendendo às especificidades da idade.

Raí – O trabalho infantil tira a criança da escola. O aprendiz fortalece a formação e isso dá retorno para o País. Haverá uma mão-de-obra mais bem preparada.

ISTOÉ – Por que o governo não resolve questões simples como essa?
Raí e Oded Grajew

Oded – No governo, você fica numa redoma, onde se perde o contato com as
coisas da vida, da realidade. E você perde sensibilidade para as coisas, elas
ficam meio virtuais. Pensa-se muito na eleição. O que prevalece é a lógica do
poder para quem está lá.
Raí – E esquecem até que o presidente da República foi um aprendiz.

ISTOÉ – Será que o problema é a tal da herança maldita, uma lei do FHC?
Raí e Oded Grajew

Oded – Num ato de grandeza, acho que o Lula deveria chamar o Fernando
Henrique e assinarem juntos. E ficaria assim: o Fernando Henrique fez a lei e o
Lula regulamentou. Mais uma vez, só falta vontade política. Isso é de interesse da sociedade. A questão agora é que perdemos a paciência. Vamos protestar e fazer o máximo para constranger.

ISTOÉ – O que muda com a regulamentação da lei?
Raí e Oded Grajew

Oded – Serão cerca de dois milhões de jovens a cada dois anos
inseridos na sociedade.
Raí – Muitos detalhes vão depender justamente da regulamentação. O ideal era atender os jovens de 14 a 18 anos, a faixa que mais precisa e caracteriza a aprendizagem. Mas foi aumentado o limite para 24 anos e há o perigo de virar mão-de-obra com custo menor. A regulamentação tem que se cercar de cuidados para que a essência da lei permaneça.

ISTOÉ – O sr. se sente frustrado depois de passar pelo governo e não ter conseguido melhorar a área social?
Raí e Oded Grajew

Oded – Conseguimos, durante um ano, construir muitas cisternas. Chegaram a 20 mil agora. Atraímos os bancos para apoiar o trabalho da Articulação do Semi-Árido. Era uma coisa que não dependia do governo. Fizemos também os bancos de alimentos e o Mesa São Paulo, com reaproveitamento de alimentos. Muitos projetos foram adiante. Eram resultados de articulação com a sociedade civil e com as empresas. Não envolvia um tostão do governo. A grande frustração foi não conseguir essa regulamentação.

ISTOÉ – As entidades da área da infância dizem que o governo Lula foi um dos que menos investiram nessa área…
Raí e Oded Grajew

Oded – Não sei se foi mais ou menos. Mas criança e adolescente não são prioridades dos governos brasileiros. Seja federal, seja estadual ou municipal. Basta ir em qualquer cidade brasileira e visitar qualquer escola pública. E perguntar aos prefeitos, vereadores, ministros, senadores, deputados e secretários quem tem filho em escola pública.

ISTOÉ – Só na universidade pública…
Raí e Oded Grajew

Oded – Quando os filhos de governantes fizerem o ensino fundamental e o médio nas escolas públicas, finalmente, a criança e o adolescente no Brasil serão prioridades nas políticas públicas. A verdade é que, para quem tem dinheiro, os filhos terão mais chance na vida. Quem não tem terá bem menos oportunidade. Quando a criança for prioridade, será colocado no orçamento o quanto é necessário para que todas tenham saúde e educação, até completar sua maioridade. Tenho certeza que nossos pais fizeram isso, mesmo quando não tinham recursos.
Raí – Eu tinha uma grande expectativa neste governo, mesmo não esperando resultados a curtíssimo prazo. Mas essa lei é um exemplo. A gente não vê iniciativas importantes para que haja perspectivas de melhora num futuro próximo. E há uma frustração que incomoda.

ISTOÉ – O que vai acontecer exatamente nas manifestações?
Raí e Oded Grajew

Raí – No dia 27, haverá uma grande mobilização popular, com entidades, artistas, escolas de samba e a Confederação Nacional de Skate. Estarão lá também o grupo Cidade Negra, a cantora Maria Rita, o Simoninha, o Jair Rodrigues, o Sócrates (ex-jogador e irmão de Raí), o Teatro Oficina e o Circo Escola Picadeiro, só para citar alguns. Vai ser um megaevento e um exercício de cidadania. E no dia 1º vamos bater na porta, lá em Brasília, junto com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança (Conanda) e a Fundação Abrinq. Terá uma tenda gigante, com participação de grafiteiros e faremos uma romaria no Palácio do Planalto, na Casa Civil, no Congresso e no Ministério do Trabalho.

ISTOÉ – O que o motivou a defender a causa da infância?
Raí e Oded Grajew

Raí – Tento ajudar a dar uma oportunidade para aqueles que não têm acesso ao que os nossos filhos tiveram. E tenho um histórico familiar. Meu pai é nordestino, de origem pobre, da periferia de Fortaleza. Era funcionário público de baixo escalão e depois mudou-se para Belém. Ele atuou como advogado autodidata no interior do Pará e escrevia discursos para os candidatos a prefeito. Só depois dos 30 anos estudou direito. E ele se sacrificou pelos seis filhos, fez a gente valorizar muito as oportunidades. Foi por causa dele e também por meu irmão mais velho, o Sócrates, que sempre teve uma postura política; e por jogar futebol, onde aprendi muito e vi exemplos de vida. Na França, onde joguei, também aprendi que tudo aquilo que eu acreditava era possível. Eu tinha um salário alto como jogador de futebol, mas a filha da minha empregada e a minha filha freqüentavam a mesma escola, moravam na mesma região e tinham o mesmo médico. Para mim, isso é a base da justiça social.