30/11/2005 - 10:00
Irrequieto como os garotos de sua idade, Jaques Alves de Araújo, nove anos, sempre achou divertido subir nas mangueiras que enfeitam Nova Esperança do Piriá, no interior do Pará. Numa dessas artes, no sábado 5, o pé do menino falseou e ele caiu de cabeça. A queda aconteceu às 8 horas e o garoto ainda se manteve consciente até às 11 horas, quando entrou em coma. A mãe, Jaciara, correu desesperada em busca de socorro. O posto médico local não está equipado para tratar casos graves e restou à prefeitura ceder uma ambulância. O pequeno Jaques, sua mãe e sua avó começavam assim um calvário comum a milhões de brasileiros que moram em regiões distantes da capital. A municipalização, coordenada pelo ministro da Saúde, Saraiva Felipe, não consegue suprir de bons hospitais a população e persiste a carência, que faz principalmente os brasileiros mais pobres penarem em busca de socorro. A ambulância com o menino de Piriá e seus parentes rumou para Belém – a 300 quilômetros de distância – e só chegou às 16h30 ao Hospital Pronto-Socorro Municipal do Guamá. Não havia vaga. Meia hora depois, o veículo estacionou em outro hospital municipal. “Pelo amor de Deus, ele está muito mal”, implorou a mãe, que acabou conseguindo a internação. Terminava ali a peregrinação de Jaques. Infelizmente, ele não resistiu: morreu três dias após ser internado.
A crise na saúde não tem fronteiras, vai do Norte ao Sudeste. O quadro é tão grave que mesmo doentes que estão próximos a metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo não têm garantia de sofrimento menor. No dia 21 de outubro, o pedreiro carioca Francisco da Silva, 59 anos, sofreu um acidente vascular-cerebral. Morador do bairro do Catumbi, na zona norte do Rio, foi para o Hospital Municipal Souza Aguiar. Vinte dias após dar entrada na emergência, a reportagem de ISTOÉ encontrou Francisco no mesmo lugar. “Não tem vaga na cardiologia”, chora Lia Regina Alves, ex-mulher do pedreiro. Encolhido na maca, ele se protege com um cobertor rasgado, conseguido no dia anterior. O medo de quem sente a morte à espreita está em seus olhos, às vezes cheios de lágrimas. Fala pouco e não quer mais comer. “Desde que chegou, servem uma água rala com legumes que eles chamam de sopa. Ninguém agüenta isso”, protesta Lia. Há escassez de alimentos no hospital, segundo denuncia o sindicato dos médicos, porque a Prefeitura do Rio não pagou os fornecedores. Nos hospitais municipais, além de comida, faltam médicos, remédios, manutenção dos equipamentos, e as empresas de conservação ameaçam parar por falta de pagamento. “É um verdadeiro genocídio. Estão matando a população pobre”, denuncia o presidente do Sindicato dos Médicos do Rio, Jorge Darze.
Incompetência – Seja qual for a região, é difícil encontrar hospitais públicos ou conveniados ao SUS que façam valer o direito ao tratamento médico de qualidade. Não chega a ser novidade a constatação de que o sistema de saúde funciona precariamente. O mais trágico é o aprofundamento do caos. As causas são muitas e passam por todas as esferas de governo. Em março, o Ministério da Saúde, à época sob a responsabilidade de Humberto Costa, interveio nos hospitais municipais do Rio. A ação ruidosa alvejou as pretensões do prefeito César Maia (PFL) de concorrer à Presidência. O que se constata agora, porém, é que o ministro Saraiva Felipe está à altura da inoperância do prefeito carioca. Na avaliação do presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Héder Borba, o Ministério da Saúde tem que investir mais. “Há um déficit de cerca de R$ 12 bilhões anuais em recursos da União para a saúde”, estima ele.
A situação do Rio parece ser a mais grave. Os hospitais da cidade têm deficiências de municípios mais pobres, com a diferença de atender uma população de milhões. Essa mistura de mazelas está bem representada na emergência do Hospital Geral de Bonsucesso (HGB), do governo federal. Quando ISTOÉ esteve no setor, constatou a superlotação: no espaço para 30 doentes amontoavam-se 89. Em todos os vãos disponíveis havia macas. Médicos e enfermeiros tinham dificuldade de locomoção. No anexo da administração, o corredor estava repleto de doentes – alguns próximos à copa e ao recipiente de resíduos alimentares, outros vizinhos às prateleiras de documentos. Até na área de espera um consultório virou enfermaria. Ali, duas fileiras de cadeiras de plástico eram usadas como leito para um doente. A precariedade surpreendeu o próprio diretor-adjunto do hospital, Julio Noronha, no cargo há apenas dois meses. “Todos os que não são atendidos nas unidades do município e do Estado acabam vindo para cá. É o que causa a sobrecarga”, justifica. “Temos 49 médicos a menos”, avisa.
Os hospitais cariocas não são os únicos com problemas no Sudeste. Em São Paulo, mesmo o Hospital das Clínicas (HC), do governo estadual, reconhecido pelo seu padrão de qualidade, tem vários doentes da emergência nos corredores. Na tarde de domingo 6, Cristina Pinho reclamava do tratamento dado ao pai, Manoel, com complicações motivadas por diabete. “São muitas macas. Tudo desorganizado no momento em que a pessoa está mais fragilizada”, critica ela. O presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Cid Carvalhaes, avalia que, dentro do possível, o padrão do HC é aceitável. “O problema é o excesso de pacientes de fora da capital”, acredita. Ele culpa também as gestões de Maluf e Pitta (ex-prefeitos), “que deixaram um rombo de R$ 1,5 bilhão na saúde”.
Rumo à capital – No Nordeste, o problema comum é a carência de unidades no interior. Os políticos costumam inaugurar postos médicos sem condições de atendimento e compram ambulâncias para levar os doentes aos hospitais das capitais. “É o que eu chamo de ambulancioterapia”, ironiza Alfredo Boa Sorte, presidente do Sindicato dos Médicos da Bahia. Isso aumenta o sofrimento de doentes como dona Laurência Teixeira, 65 anos, que três vezes por semana é obrigada a viajar por seis horas do município de Caraíbas até Salvador para fazer hemodiálise no hospital estadual Roberto Santos. “A vida dela é na estrada”, lamenta o neto Luiz Ricardo. A outra grande unidade de Salvador, o Hospital Geral do Estado – onde a emergência está em obras há um ano –, fica diariamente com o pátio abarrotado de ambulâncias oriundas de áreas distantes.
Na região Norte, não faltam apenas hospitais, mas também profissionais de saúde. Ali, a carência de material humano é a maior do País: a média é de 1.100 habitantes para cada médico. “É preciso criar um plano de carreira no SUS que atraia o profissional para as cidades mais distantes”, reivindica Héder Borba, presidente da Fenam. No Pará, o problema se agrava, pois não há um grande hospital central e o atendimento é disperso nos vários postos de saúde municipais, que estão longe das condições ideais. Essa falta de planejamento mantém inalteradas as condições que produzem diariamente vítimas inocentes, como o menino Jaques.