19/11/2003 - 10:00
É impossível definir exatamente com quantos anos uma criança se torna adolescente e com qual idade o adolescente passa a ser adulto. Muito mais do que uma etapa cronológica, a adolescência se caracteriza como o período em que o jovem busca sua auto-afirmação, procura romper limites, questiona regras e se sente imune a qualquer coisa. Segundo especialistas, trata-se de uma saudável fase de mudanças de comportamento. Na última semana, porém, o bárbaro assassinato dos estudantes Felipe Silva Caffé, 19 anos, e Liana Friedenbach, 16, revelou, em cores cruéis, que, numa sociedade marcada por desigualdades profundas na qual a vida se tornou banal, a adolescência está sendo roubada. “Viver perigosamente deixou de ser uma expressão charmosa que apontava alguns comportamentos típicos de adolescentes para tornar-se uma frase com sentido bem concreto e ameaçador”, diz a psicóloga Rosely Sayão, autora de Como educar meu filho? Entre os frios assassinos de Liana e Felipe está também um adolescente que confessou ter matado apenas porque sentiu vontade de matar. O caso chocou o País e reanimou o debate sobre a redução da maioridade penal no Brasil.
Liana, a filha mais velha de uma família de classe média alta, cursava,
no período noturno, o segundo ano do ensino médio no Colégio São Luiz, um dos mais tradicionais de São Paulo. Na quinta-feira 29 de outubro,
ela disse aos pais – o advogado Ari e a pedagoga Márcia – que passaria o final de semana com amigas do Shazit, um grupo de jovens ligados à Congregação Israelita Paulista (CIP), em Ilhabela, no litoral norte de
São Paulo. Felipe, o caçula dos quatro filhos do economista Reinaldo
e da enfermeira Lenice, de classe média baixa, estava desempregado
e cursava o terceiro ano do ensino médio, também no São Luiz,
como bolsista. Ele namorava Liana havia um mês e meio e disse
aos pais que no final de semana iria acampar com amigos em um sítio
de Embu-Guaçu, na região metropolitana de São Paulo. Felipe e Liana mentiram para seus pais.
Na sexta-feira 30 de outubro, os dois saíram do colégio por volta das
23h e passaram o resto da noite perambulando pela avenida Paulista.
No sábado pela manhã, tomaram um ônibus para Embu-Guaçu e depois caminharam cerca de oito quilômetros até chegarem, perto do meio-dia, ao sítio do Lê, uma área abandonada pelo proprietário, quase na divisa com o município de Juquitiba. No caminho, compraram água, miojo, biscoitos e leite em pó. Montaram a barraca e foram passear em um lago próximo dali. Quando estavam perto do lago, o sonho romântico dos adolescentes que buscavam um final de semana a dois no bucólico cenário da Mata Atlântica começou a virar pesadelo.
Medo – Quando caminhavam para o
lago, Felipe e Liana foram vistos pelo também adolescente R.A.A.C., 16 anos, conhecido como Champinha. Pobre, filho de pai alcoólatra, ele estudou apenas até a terceira série do ensino básico. Entre os dez e os 14 anos, Champinha ajudou a mãe no trabalho da roça, mas, no lugar de uma adolescência sadia,
ele sofre com a falta de medicamentos para as convulsões que começou a
ter a partir dos 14 anos, quando
passou a viver largado pelas ruas prestando serviços a quadrilhas que atuam nos desmanches de carros roubados. Apesar de não registrar nenhuma passagem pela Febem, ele é acusado de já ter matado pelo menos uma pessoa. Sempre com um facão na cintura, Champinha se impunha na região pelo medo que transmitia aos vizinhos, conhecedores de seus crimes. Quando avistou o casal, planejou assaltá-los. Chamou o comparsa Aguinaldo Pires, 41 anos, seu companheiro em pequenos furtos e caseiro da Chácara Fazenda Boa Esperança, a quatro quilômetros do sítio do Lê. Aguinaldo, com uma espingarda usada para caçar, e Champinha, com o facão, renderam o casal sem dificuldade. Foram até a barraca e pegaram cerca de R$ 45 na carteira de Liana. Frustrados com a falta de maiores valores, decidiram que o assalto iria se transformar em sequestro. Levaram o casal até a Chácara Boa Esperança. Lá, um outro comparsa, Paulo César Marques, conhecido como Pernambuco, se juntou ao grupo. Em um casebre bagunçado, sujo e sem luz elétrica, os cinco passaram a noite no
mesmo quarto.
No domingo pela manhã, Felipe argumentou que sua família não era
rica e que tinha um irmão policial. Foi o suficiente para selar seu
destino. Os cinco deixaram a casa e caminharam cerca de três quilômetros pela mata. Próximo a um desfiladeiro, Pernambuco
pegou a espingarda de Aguinaldo, mirou a nuca de Felipe e disparou. Segundo legistas do IML paulista, o estudante morreu em poucos segundos. Liana, de acordo com o depoimento de Champinha, não
viu o namorado ser morto, mas ouviu o tiro e entrou em estado de choque. “Ela ficou tremendo o tempo todo e não falava nada. Só chorava”, disse Aguinaldo na delegacia de Embu-Guaçu.
Depois de assassinarem Felipe covardemente, Champinha, Aguinaldo e Pernambuco levaram Liana de volta ao cativeiro. No final da tarde, Pernambuco se dirigiu a São Paulo com o propósito de “vender Liana a sequestradores experientes”. Até a madrugada da quarta-feira 5, a garota de olhos azuis permaneceu refém de Champinha e Aguinaldo. Ela, ameaçada com uma faca, era obrigada a representar o papel de namorada de Champinha, e passava
os dias andando com o menor pela mata. Na madrugada da quarta-feira 5, assustado com o grande número de policiais que vasculhavam a região em busca do casal, Champinha resolveu acabar com a história. Junto
com Aguinaldo, levou Liana para dentro da mata e lhe deu duas facadas no peito. A jovem caiu e em seguida levou mais 12 estocadas no tórax e uma no pescoço, profunda a ponto de quase degolá-la. Em seguida, Aguinaldo viajou para São Paulo e Champinha foi para a casa de uma
avó, onde permaneceu até ser preso na segunda-feira 10, quando confessou o crime e levou a polícia até o local onde foram encontrados os corpos de Felipe e Liana. “Ele disse que matou simplesmente porque sentiu vontade de matar”, afirmou o delegado José Jacques. Aguinaldo foi preso na terça-feira 11 e Pernambuco na quinta-feira 13, em Jaboatão (PE). Além deles, há outras duas pessoas presas: sitiantes da região que estavam com a espingarda de Aguinaldo e são acusados de serem cúmplices dos assassinatos.
Desabafos – Os pais de Liana e Felipe só descobriram a mentira dos filhos no domingo à noite. Preocupado com a demora da filha, o advogado Ari foi à Congregação Israelita Paulista e ficou sabendo que a excursão para Ilhabela havia sido adiada. Telefonou para as amigas da filha e soube que ela tinha viajado com o namorado. Em seguida, ele avisou a mãe de Felipe. Ela também estava estranhando a demora do filho. Na segunda-feira pela manhã, ele deveria comparecer a uma entrevista na qual concorreria a uma vaga de auxiliar de escritório. Na terça-feira 11, depois de enterrarem seus filhos, o advogado Ari e o economista Reinaldo ainda encontraram forças para enviar recados aos adolescentes. “Infelizmente, o exemplo aconteceu com meu filho, mas os jovens devem conversar mais com seus pais. Se Felipe tivesse dito que iria acampar sozinho com a namorada eu não teria deixado”, disse Reinaldo, que há sete anos vive separado da mulher. “É importante que os adolescentes falem com os pais, ouçam o que eles têm a dizer e na hora de contar alguma mentirinha pensem que são seus melhores amigos”, aconselha Ari.
Desafios – O trágico desfecho para a aventura de Felipe e Liana choca pela crueldade e coloca pais e filhos diante de um enorme desafio. Aos jovens, como ser adolescente em uma sociedade capaz de gerar tantas atrocidades. Aos pais, como prepará-los para isso. Compreender a adolescência é, segundo especialistas, o primeiro passo para lidar com ela. Pequenas mentiras como as contadas por Liana e Felipe são comuns. “Os jovens mentem e vão mentir sempre. É uma maneira de adquirir privacidade”, diz a psicóloga Roseli Sayão. A estudante Samira Valadão Goularte, 17 anos, confirma a tese. Ela acha difícil evitar algumas mentirinhas. “Muitos pais não deixariam a filha de 16 anos viajar com o namorado. Aí, as meninas acabam inventando histórias mesmo, por mais amor e respeito que tenham pelos pais”, diz. Preocupada com a segurança, Samira adotou a estratégia de usar o celular para manter os pais informados sobre seu bem-estar. Como ela, milhares de adolescentes usam a mesma tática. Liana também pensava assim. O problema é que ela não teve tempo de ligar. O telefone foi encontrado abandonado com seus demais pertences na barraca que nem chegou a usar.
Mais do que privacidade, na adolescência, os jovens buscam a auto-afirmação. Valentina Pigozzi, psicóloga autora de Celebre a autonomia do adolescente, explica que essa é a fase em que a criança precisa romper com a identificação com a família, por isso surgem o comportamento de oposição, contradição, negação, as mentiras e as omissões. “A busca da autonomia é algo natural e saudável, não há como evitar. O adolescente está procurando seu lugar no mundo e, para encontrá-lo, ele precisa romper com tudo o que foi até o momento”, afirma. Ela explica que nas sociedades primitivas essa transformação era feita por meio de rituais de passagem. Momentos em que o jovem tinha que provar determinados valores, como força, coragem, equilíbrio, honra e amadurecimento. Os índios fazem isso até hoje. Num passado mais próximo, esses rituais eram expressos por bailes de debutantes, por exemplo, que apontavam o momento de dizer à sociedade que as moças estavam prontas para a vida adulta. Os bailes ainda existem, mas perderam esse significado. “Como hoje não temos mais esses rituais formalmente organizados pela sociedade, os adolescentes criam os seus próprios códigos. São o ficar, o experimentar drogas, o viajar sozinho, os trotes”, afirma Valentina. O problema é que isso é feito instintivamente e, por isso, muitas vezes de forma violenta, sexualizada ou arriscada.
Onipotência – Outra característica da adolescência que desespera os pais é a atração irresistível que os jovens têm pelo prazer de viver perigosamente. “A onipotência é um dos sentimentos básicos da adolescência. Os jovens se sentem indestrutíveis e inatingíveis”, lembra Vera Lengruber, presidente da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro. Uma conversa com alguns dos colegas de escola do casal Felipe e Liana mostra bem essa realidade. “Eu faria o mesmo que Felipe. Ele estava apaixonado, conhecia a região onde acampou e queria impressioná-la”, dizia Fábio Toscano, 18 anos, com lágrima nos olhos, depois de assistir à missa realizada na terça-feira 11 no Colégio São Luiz em homenagem ao casal assassinado. “A gente nunca pensa que a violência vai nos atingir. Mas ela está na nossa porta. Como vamos sonhar e viver desse jeito?, questionava Vagner dos Santos Monteiro, também de 18 anos. Como ele, a maioria dos adolescentes não têm respostas e se vêem obrigados a crescer com o pé no freio. É o caso do estudante André Tarantino, de São Paulo. Como grande parte dos jovens das grandes cidades, ele tem medo de andar de bike pelas ruas e evita até mesmo ir ao parque perto de sua casa. “Há coisas que eu gostaria de fazer e sei que não dá. E deixo meus pais avisados para onde vou porque pode acontecer
qualquer coisa hoje em dia”, lamenta. A mãe, Denise, 42 anos, também sofre com esse problema. “Sei que o adolescente precisa transgredir
para crescer. Tento não superproteger, mas algumas vezes me vejo pegando o carro e levando meu filho para lugares que daria para ele ir com as próprias pernas”, conta.
Para enfrentar essa questão com mais tranquilidade, o psiquiatra Içami Tiba, autor de vários livros sobre educação, como os best-sellers Quem ama, educa! e Disciplina: limite na medida certa, dá algumas pistas. Segundo ele, os jovens não têm mesmo que deixar de experimentar, mas devem ter a exata noção do que experimentam e isso cabe aos pais ensinar. “O adolescente não pode ficar preso em casa em nome da segurança. Ele tem que ser preparado para este mundo em que vivemos”, afirma. Tiba observa que todo sonho tem que ter um pé na realidade. Cabe à família preparar os filhos para conviver com os riscos. “Ser previdente não é incompatível com a adolescência. Basta ser treinado para isso. Até para transgredir, o jovem tem que se sentir capaz e responsável pelo seu próprio bem-estar”, conclui o psiquiatra.
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“Que ânsia de liberdade é essa?” |
Uma história com final feliz, mas também angustiante. Luz Amanda Ramos, 14 anos, está de volta ao convívio familiar depois de ter passado 11 dias viajando pela Bahia ao lado do namorado Wander Alves Rimorini, 20, com quem fugiu no dia 30 de outubro. A garota pegou R$ 1.100 da bolsa da mãe e eles viajaram no carro da família. Wander era garçom da Pousada Terra da Luz, dos pais de Amanda, Cláudia Adriana Fontes Borges e Henrique Cândido Ramos, situada em Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro. O namoro, que era consentido e durava oito meses, agora está suspenso. “Nós só queríamos viver a nossa vida em liberdade”, disse a menina. Wander chegou a ser preso por rapto de menor e furto e aguarda em liberdade o julgamento. A família viajou para local ignorado. Ilmara Borges, a avó de Luz Amanda, deu a seguinte entrevista a ISTOÉ. ISTOÉ – A sua neta está arrependida? ISTOÉ – Qual foi a reação dela quando soube o que aconteceu com os adolescentes de São Paulo? ISTOÉ – Como os pais vão agir daqui para a frente? Eliane lobato |
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