12/11/2003 - 10:00
Poucos duvidam que a globalização tenha trazido bons frutos. Mas se no intercâmbio mundial houver predominância de uma cultura de maneira esmagadora, corre-se o risco de extinguir o que cada país tem de mais genuíno, autêntico e belo, seu patrimônio cultural. Foi pensando nisso que líderes governamentais, organizações internacionais da sociedade civil e profissionais da área de cultura resolveram tomar uma atitude para tentar encontrar um instrumento político que pudesse salvar a fauna e a flora culturais. Se a proteção ao meio ambiente foi a vedete dos palcos de discussão no final do século passado, na entrada do século XXI é a vez de a cultura roubar os holofotes. Da dança e música Garifuna do Belize, passando pelo maracatu pernambucano até o teatro Nokagu do Japão, culturas distintas e distantes, que agora podem ser abrigadas em um mesmo teto que promete protegê-las da ameaça de extinção. Na 32ª sessão da Conferência Geral da Unesco (realizada entre os dias 29 de setembro e 17 de outubro) foi adotada a primeira convenção sobre a diversidade cultural como patrimônio da humanidade. De acordo com essa convenção, fica estabelecido como “cultura hereditária intangível” expressões, conhecimentos, transmitidos de geração em geração, que dão um senso de identidade e continuidade às comunidades. Pode dar muito pano pra manga colocar em prática essa proteção, mas segundo a Unesco isso deve acontecer dentro de políticas públicas de preservação e proteção dessas culturas.
A França, com uma política de diversidade cultural de mais de três décadas, encabeçou as propostas levadas à Unesco. A espinha dorsal é que a cultura não deve ser enxergada apenas como um produto mercantil a ser negociado na Organização Mundial do Comércio (OMC), como vem sendo feito até agora. “Uma vez que a lista de produtos culturais seja colocada na mesa da OMC, ela não pode mais ser retirada. É como escrever no mármore. Agora, o ponto crucial é encontrar a articulação entre a Unesco e a OMC”, afirmou Frank Supplisson, do Ministério da Economia. A França sempre se opôs à liberalização dos serviços culturais, entrando em colisão com os EUA, que dominam hoje 95% da indústria de entretenimento no mundo. “Em termos de filmes e músicas, a língua inglesa é tão poderosa que domina o intercâmbio. As pessoas se sentem ameaçadas por suas culturas”, afirmou Michel Rocard, ex-primeiro-ministro socialista e presidente da Comissão de Cultura no Parlamento europeu. Depois de 19 anos, os EUA regressaram à Unesco, mas deixaram claro que não estão dispostos a ratificar a convenção.
O confronto cultural entre Paris e Washington é uma briga antiga. “A americanização não é a difusão do que se tem de melhor na cultura americana. O que mais se vende é o mais banal que toma conta do mundo. Até nos EUA ficam marginalizadas as grandes expressões. Mas, depois do 11 de setembro, eles retornaram à Unesco por entender a importância da diversidade cultural”, afirmou a ISTOÉ o ministro da Cultura francês, Jean-Jacques Agillion. “O choque entre o Ocidente e o resto do mundo é baseado na falta de compreensão de outras culturas. Não estamos de acordo com o choque de civilizações”, completou Emmanuel Glimet, assessor do primeiro-ministro, Jean-Pierre Raffarin. “O debate sobre a importância da diversidade cultural não é novo. O que há de novo é a demanda de regulamentos que não devem entrar na OMC”, disse Michel Rocard.
A disputa poderia servir apenas como um contraponto à hegemonia cultural americana, mas, ao aportar na Unesco, surge a necessidade de se aprofundar o tema. A política da França de proteger sua produção e distribuição cinematográfica, por exemplo, com cotas obrigatórias de 40% de filmes nacionais em todas as salas de cinema, deu fôlego aos profissionais da área cultural. “Nós conseguimos colocar as cotas para os filmes franceses no início da globalização e graças a isso a indústria sobreviveu”, afirma Frank Supplisson. “Na Europa, o filme francês domina o mercado, mas veja o que aconteceu com a Itália e a Alemanha, que hoje abocanham apenas 5% do mercado europeu”, completa ele. “Temos uma política forte de subsídios para o cinema e a música. O teatro só não foi confrontado porque não é um setor industrializado”, afirmou Pascal Rogard, presidente da Associação do Sindicato de Autores, Realizadores e Produtores (ARP). Mas, para o líder sindical, ao contrário do que dizem os americanos, o estímulo à produção francesa não significa fechar barreiras para os enlatados hollywoodianos. “Estamos preocupados com uma definição de diversidade cultural que, sem querer, possa levar à criação de barreiras protecionistas. O crucial é que a diversidade cultural repouse na livre circulação de idéias e bens”, alertou o secretário-adjunto do Departamento de Estado americano, Kim Holmes. “Os EUA têm forte proteção de sua indústria de entretenimento. Mas na televisão francesa comerciais de filmes americanos são vetados. Aceitamos o mercado livre, mas não as regras da Fox”, retrucou Rogard.
A diversidade cultural só faz e fará sentido se não tolher a liberdade de expressão, seja ela dos artistas ou do público. “A questão é não impor nenhum filme ao público. Ninguém aqui é obrigado a assistir a filmes franceses. Mas, se for verificar nossa bilheteria, os dez primeiros são nacionais”, afirma Supplisson. “O Canadá tem cotas até para os discos nacionais em suas lojas. A Coréia do Sul também adotou o sistema de cotas para filmes”, completou ele. Essa interferência direta do Estado parece coisa do velho comunismo. Se para alguns soa estranha, para os franceses é uma questão de sobrevivência. “Sendo frágil, a criação deve ganhar apoio do Estado. Mas o essencial é que a diversidade cultural seja interpretada em cada país. O Brasil, por exemplo, é singular em sua diversidade cultural por guardar tantas tradições e, ao mesmo tempo, ter um alto nível de arte contemporânea. Estive com o ministro Gilberto Gil e sei que ele está empenhado em incentivar e proteger a cultura brasileira. O processo deve ser democrático e a cultura tem que estar disponível à toda população”, disse o ministro da Cultura Agillion.
O Brasil votou a favor da convenção, apesar de os últimos governos terem seguido a posição de Washington pela liberalização dos serviços da cultura. “O Ministério da Cultura e o Itamaraty têm posição integrada no sentido de proteger e promover a diversidade cultural. A defesa do patrimônio cultural deve ser objeto da Convenção da Unesco e não nos sentimos ameaçados com a discussão da produção cultural no âmbito da OMC”, afirmou Nazaré Pedrosa, chefe da assessoria internacional do Ministério da Cultura. “Estivemos discutindo a diversidade cultural em muitos países, inclusive no Brasil, onde senti, por exemplo, que a Rede Globo está de um lado e o Ministério da Cultura de outro”, ponderou Yves Saint-Geours, da chancelaria.
O interessante é que, na França, a política de diversidade cultural independe de partidarismo. Jack Lang, deputado e ex-ministro da Cultura e da Educação no governo socialista de François Mitterrand, por exemplo, trabalha em conjunto com o atual governo de direita do presidente Jacques Chirac. “A diversidade cultural deve ser levada adiante por partidos de direita ou de esquerda dentro de cada país. Não sou contra a economia de mercado, ao contrário, investir em arte é mover a economia. No Brasil, a indústria musical é reconhecida pelo setor econômico e cultural”, afirmou o ex-ministro.
O intercâmbio cultural da França dentro da Francofonia é intenso.
Com um orçamento anual de 20 milhões de euros, a Associação
Francesa de Ação Artística (Afaa) – agência do Ministério das Relações Exteriores da França – promove dois mil eventos por ano em todo o mundo. Com o governo brasileiro e instituições privadas, agora acerta os ponteiros para o grande evento França-Brasil 2005, ano em que a cultura brasileira será homenageada. São inúmeros os eventos que o governo francês realiza com diversos países, como a Bienal de Fotografia do Mali e o Festival de Dança de Madagascar. “Existem três grandes orientações diante desta política. A primeira delas é que, assim como a do meio ambiente, ela deve acontecer para o desenvolvimento sustentável. Em segundo lugar, é necessário que haja uma mobilização de toda a sociedade civil, incluindo as ONGs. E a terceira, que haja responsabilidade coletiva”, concluiu Yves Saint-Geours.
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