Não é todo dia que se vê um piloto de equipe top de Fórmula 1 ficar de cueca nos boxes. Essa inusitada cena foi protagonizada por ninguém menos que Rubens Barrichello, na tarde da segunda-feira 3, no kartódromo da Granja Viana, um condomínio de luxo situado nos arredores de São Paulo. Ali, entre a noite do sábado 8 e a manhã do domingo 9, será disputada a 7ª edição das 500 Milhas, uma prova de longa duração que a cada ano se consolida como a mais charmosa do kart brasileiro. Longe da pressão da F-1 e da sombra do “companheiro” Schumacher, Rubinho se sentia em casa. “Aqui, eu posso fazer tudo aquilo que eu sei. Isso me deixa feliz. O mundo da Fórmula te impede de ser uma pessoa espontânea, normal.” Prova disso é que minutos antes de sentar no carrinho ele trocou, na frente de quem estava por ali, a calça jeans pelo macacão e nem ficou vermelho de vergonha por isso. Por falar na cor da Ferrari, o relaxado Rubinho ignora os boatos de que o time de Maranello não renovará o seu contrato ao término de 2004. Felipe Massa, recém-contratado pela Sauber e seu companheiro de equipe nas 500 Milhas da Granja, seria o seu substituto. “Minha única preocupação é vencer corridas. Se eu vou ou não continuar na Ferrari, é algo para ser discutido no momento oportuno. O importante é que eu estou bem comigo mesmo”, diz Barrichello.

O clima que relaxa o brasileiro da Ferrari é a marca registrada dessa corrida, uma espécie de pelada de fim de ano dos pilotos. E a brincadeira promete. Felipe Massa, Antônio Pizzonia, Felipe Giaffone, Luciano Burti e Cristhian Fittipaldi, entre outras feras, deixaram as férias de lado para acelerar pelos 1,1 mil metros do circuito. E os brazucas terão concorrentes de peso. Convidados de honra para o casamento de Tony Kanaan, piloto brasileiro da Indy Racing League (IRL), marcado para o dia anterior, feras da F-1 e das categorias americanas IRL e Cart, como Juan Pablo Montoya, Jimmy Vasser, Michel Jourdain, Marco Andretti (neto de Mario e filho de Michael) e Nicolas Todt (filho de Jean, chefe de equipe da Ferrari), farão desta a edição mais internacionalizada da prova. Mas a presença mais badalada dessa constelação é a do italiano Alessandro Zanardi. O piloto, que perdeu as pernas após sofrer um brutal acidente durante uma prova da Fórmula Mundial realizada na Alemanha, em 2001, correrá num carro especialmente desenvolvido para ele pelo ex-piloto e fabricante de kart Zeca Giaffone. Além de acelerar, Zannardi será um dos padrinhos de casamento de Kanaan.

O ambiente de confraternização das 500 Milhas produz imagens
raras de serem vistas em outras pistas. Filha de um preparador de motores, a pequena Bruna Bianca Alcindo, de apenas seis anos,
desfilava à vontade pelos boxes. Acompanhada pela mãe, Nicéia, e vestida com um macacãozinho vermelho da Ferrari, ela estava entusiasmada por ter conseguido um autógrafo do ídolo Rubinho.
“Ele me deu um beijinho”, dizia a menina, encantada. A alguns metros
dali, alguém apenas um pouco mais velho do que Bruna não parecia
muito a fim de autógrafos e beijos. Um dos pilotos mais jovens da prova, Yann Grzywacz, de apenas 13 anos, prometia não tirar o pé para as feras. “Não é porque eles são da F-l ou da Fórmula Indy que eu vou deixar passar. Eu quero chegar ao pódio”, diz Yann.

Ele e os mais 300 pilotos que guiarão os 70 karts inscritos na corrida. Entre eles uma garota
que promete fazer muito marmanjo comer
poeira. Nascida no Brasil e residente no Uruguai, a curitibana Sara Sanchez tem um sonho: ser a primeira brasileira a chegar à F-1. Talento não falta. Aos 16 anos, a loirinha acumula títulos na carreira. Nas próximas semanas lutará pelo seu terceiro campeonato uruguaio: é segunda na classificação geral. Resultados conquistados, apesar da má vontade, e até mesmo deslealdade, de alguns concorrentes do sexo oposto. “Sempre houve preconceito. Alguns meninos não se conformam em me ver andar na frente deles. Muitas vezes fui tirada das corridas. Mas a
minha resposta eu dou na pista”, diz a moça.

Nas 500 Milhas da Granja, Sara correrá pela SV Labs, uma das equipes mais estruturadas da prova. O dono e chefe do time, o empresário
Paulo César Brein, é o típico exemplo do apaixonado por corridas que
só depois do 40 anos conseguiu realizar o desejo de acelerar numa pista. “Na época em que deveria iniciar a carreira, eu era vendedor de livros. Não tinha grana para correr. Agora dá para brincar”, diz ele, proprietário da empresa de softwares que dá nome à equipe. A diversão tem rendido bons resultados. A equipe de Brein venceu provas em diversas categorias. Na Granja, promete dar trabalho a Rubinho, que luta pelo pentacampeonato. Nem na “pelada” o piloto da Ferrari tem sossego.

 

“Não tenho mais as pernas, mas é para a frente que se anda”

O piloto italiano Alessandro Zanardi, 37 anos, bicampeão da Fórmula Cart, é o mais festejado dos padrinhos de casamento do brasileiro Tony Kanaan que aproveitam a visita para disputar a “pelada” das 500 Milhas de Kart da Granja Viana. Em 2001, o brincalhão Zanardi perdeu as pernas numa prova da categoria na Alemanha, quando seu carro foi atingido pelo do canadense Alex Tagliani. Nesta entrevista, ele conta o que mudou na sua vida, fala sobre o amigo Kanaan e revela seus planos para o futuro.

ISTOÉ – Você veio do aeroporto e fez o melhor tempo do dia no treino…
Alessandro Zanardi –
Os três melhores: 57s11, 57s14 e 57s17. Uso duas próteses. O kart precisa ser adaptado. Tivemos problemas com isso no início, mas acertamos tudo. O Rubens (Barrichello) e o Tony (Kanaan) festejaram minhas marcas. Pularam como loucos naquela varanda. Você viu?

ISTOÉ – Sim. Eles dizem que você jamais perdeu o bom humor…
Zanardi –
Verdade. Costumo dizer que não tenho mais as pernas, mas é para a frente que se anda. Raramente as pessoas saem vivas de acidentes como o que sofri. Estou aqui, correndo com os amigos e recebendo carinho. Minha mulher, Daniela, e meu filho, Nicolò, ajudaram muito, mas a força mais importante veio de dentro de mim. Sempre fui um otimista.

ISTOÉ – Você nunca ficou deprimido?
Zanardi –
Apenas uma vez. Não pela minha situação, mas por uma criança que conheci com o mesmo problema. Pensei nela crescendo e ouvindo piadinhas na escola, sem poder jogar bola, correr ou ir ao cinema paquerar. Ela pode ser uma criança feliz. Mas o fato é que chorei e fiquei pensando nisso por dias.

ISTOÉ – Em maio, você completou sozinho, no circuito alemão
de Lausitzring, antes da corrida deste ano, as 13 voltas
que faltaram do GP de 2001 em que você se acidentou.
O que isso significou?
Zanardi –
Naquele domingo, as pessoas me aplaudiram de pé. Mas, para mim, o mais tocante foram as primeiras voltas no retorno ao circuito, na noite da sexta-feira anterior. Não me lembrava de nada da corrida. Quando passei no ponto do acidente, as cenas voltaram como se uma televisão tivesse sido ligada na minha cabeça. Via a largada, as ultrapassagens… visualizava até o tráfego. Isso me fez tirar o pé e acelerar em seguida.

ISTOÉ – Conte a história do sapato que Kanaan levou para
você no hospital.
Zanardi –
Hoje, isso é até engraçado… Corríamos na equipe Mo Nunn Racing. O Tony é um irmão. Quando se preparava para ir ao hospital, logo após o acidente, ele viu meu par de sapatos no armário. Pegou-o e pensou: “Vou levá-lo. Alex não pode sair do hospital descalço.” Lá, soube do que ocorreu. E não teve coragem de contar à milha mulher o que trazia na bolsa. Guardou os sapatos em casa. No final do ano passado, nós o visitamos nos Estados Unidos. Ele foi ao quarto, voltou com um pacote e disse: “Antes não havia como, mas agora posso te dar, ou melhor, te devolver um presente.” E aí tirou o sapato do pacote e nos contou a história. Brinquei: “Fique com eles porque eu arrumei pés maiores”. Tony calça 40. Eu calçava 42. Os pés da prótese são 43. Desde então, brinco com ele: “Seu filho da…, você roubou meu sapato!” E ele não deixa por menos. “Roubei mesmo, seu filho da… Você não precisa daquela m… para nada!”

ISTOÉ – Quais são seus planos para 2004?
Zanardi –
Lidero uma fundação que ajuda crianças carentes ou
com problemas físicos. Neste ano, comentei a temporada de F-1
para uma tevê italiana. Recentemente, voltei às pistas numa prova
do Campeonato Europeu de Turismo, em Monza. Cheguei em sétimo, com um BMW adaptado. Penso na possibilidade de disputar a temporada em 2004 nesta categoria. Há quem não acredite, mas nunca trabalhei tanto quanto depois daquele 15 de setembro.

Eduardo Marini