O brasileiro José Murça, 90 anos, passou a semana andando atrás de sua aposentadoria. O regulamento mudou e ele, juntamente com outros 105 mil pensionistas com idade acima de 90 anos, foi submetido a um agressivo e desrespeitoso périplo para provar que estava vivo. Debaixo de um tiroteio de críticas, o INSS, um dos principais ícones da burocracia no País, voltou atrás, mas o escândalo já havia espalhado indignação Brasil afora. Foi uma aberração criada para combater a fraude da retirada do benefício depois da morte do beneficiário. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) constatou 30 mil casos dessa retirada indevida e
bloqueou o pagamento das aposentadorias e pensões de todos os segurados com mais de 90 anos de idade que estejam recebendo o benefício há mais de 30 anos, cerca de 105 mil em todo o Brasil. Para quem tem mais de 100 anos o bloqueio não dependia do tempo de benefício. Desbloquear a conta era um caso de polícia: o INSS exigia
que o segurado comparecesse à agência da Previdência Social para provar que estava vivo. Antes disso poderia passar horas ao telefone tentando obter informações. Missão impossível: o número recomendado para tal serviço em São Paulo – 3315-1014 – já nasceu ocupado. Ou
ainda esperar que um fiscal do INSS fosse até a casa do aposentado, opção que fez o sr. Murça (e toda a torcida do Flamengo) rir, tamanha a incapacidade do instituto.

Sem competência para administrar a fraude, a solução mais fácil encontrada pelo INSS foi violentar o Estatuto do Idoso e acirrar a burocracia – burocracia que muda de endereço, mas não perde a
força. A Caixa Econômica Federal está financiando imóveis? Não pule
de alegria. A experiência mostra que a aquisição de um imóvel, mesmo com toda a documentação adequada e toda a esperança de que, enfim, você está próximo da casa própria, irá infernizá-lo por alguns meses, durante o calvário da aprovação do crédito. É um quebra-cabeça de documentos com validades variadas, o que inevitavelmente faz com que um vença antes do outro e tudo tenha que começar novamente. E se o vendedor do imóvel desistir diante de tantos obstáculos? Azar seu de não viver na Inglaterra, onde a aquisição de um imóvel é mais fácil do que a locação. Basta ir ao banco no qual o pretendente tem conta, pedir uma carta de garantia de financiamento, apresentar comprovante de renda e pronto. A liberação da carta é quase imediata. Escolhido o imóvel que se quer comprar, vendedor e comprador vão ao banco para finalizar o negócio (o comprador recebe o dinheiro do banco e paga na hora). O financiamento é de 25 anos e os juros são mais baixos do que os do mercado – que já são baixos, 3,75%.

Esses desvarios da burocracia brasileira põem uma sombra nas boas notícias econômicas que, dia a dia, indicam que o País está encontrando o rumo para crescer. O juro médio nos bancos caiu de 52,7% em agosto para 49,8% em setembro, o juro do cheque especial caiu 11,7 pontos porcentuais, a produção da indústria cresceu pelo terceiro mês consecutivo, a inflação está em queda, as Bolsas vão fechar o ano com valorização superior a 50%. Isso não ameniza o drama do desemprego, mas indica que o fim do túnel ficou para trás. O cenário insinua que dias melhores virão em 2004. Dias que viriam com menos sofrimento e mais rapidez se o Brasil não carregasse um elefante branco de quatro a seis toneladas nas costas. Impossível escapar da cultura cartorial que atravessa o País de Norte a Sul, Leste a Oeste. “A Microsoft, hoje uma das mais bem-sucedidas empresas do mundo, não prosperaria no Brasil por conta do excesso de burocracia”, diz Júlio Sérgio Gomes de Almeida, diretor executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi). “Bill Gates desistiria no meio do caminho.” Exatamente como você desiste na porta de um cartório diante da fila, do péssimo atendimento, das exigências descabidas. Experimente tentar fazer uma procuração para obtenção de documentação portuguesa, por exemplo. Tenha certeza: a maior parte dos cartórios não aceitará substituir a palavra “registro” por “registo”, como pedem os portugueses, “porque isso não está no modelo arquivado no computador”. Não dá para tirar um “r”? A autoridade do cartório diz não e chama o próximo. Depois fazem piadas com o raciocínio dos portugueses…

Informalidade – Mas isso não é nada perto das dificuldades de quem pensa em abrir uma empresa pequena ou micro. Aí, sim, o interessado ficará louco com coisas inúteis. A burocracia para abrir e fechar só empurra para a informalidade. As grandes empresas sofrem menos, mas também sofrem. José Augusto Marques, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Base (Abdib), que reúne 160 grupos empresariais de médio e grande porte, conta que as empresas, por conta de um processo burro, são obrigadas a manter um departamento exclusivo para tributação com até 30 pessoas porque a legislação varia de Estado para Estado, as taxas se sobrepõem. Vale lembrar que as indústrias brasileiras pagam quase duas vezes mais impostos do que as empresas instaladas em outros países do mundo, segundo pesquisa da empresa de consultoria Deloitte. Só em ICMS e IPI, a carga tributária brasileira é de 29,8% da produção, contra uma média global de 15,7%. “O Brasil é um país excessivamente complicado”, diz Marques. “Tirar uma licença ambiental, por exemplo, leva um ano ou mais.”

A burocracia brasileira também aparece com destaque – negativo, é bom que se diga – num estudo conduzido pelo Banco Mundial chamado Doing Business in 2004. Por exemplo: para montar um pequeno ou médio negócio no Brasil são necessários no mínimo 152 dias. Na Austrália, o negócio poderá estar funcionando em apenas dois dias. O Brasil é, nesse caso, mais “competente” que a Indonésia (168 dias) e o paupérrimo Haiti (203). “O processo decisório trabalha contra o investimento, o investidor está subordinado a uma burocracia imensa”, diz o presidente da Abdib. “Precisamos de um ‘poupa tempo’ no mundo dos negócios”, reivindica o diretor do Iedi, lembrando que o maior número de empregados do País tem sua carteira de trabalho carimbada por uma microempresa.

Segundo o estudo do Banco Mundial, os analistas e elaboradores de políticas públicas têm prestado muito pouca atenção no cerne daquilo que faz os negócios funcionarem: a capacidade de iniciar e fechar um empreendimento, garantir créditos, exigir pagamentos e gerenciar a força de trabalho. Sob todos esses aspectos, o ambiente em vários países em desenvolvimento é calamitoso, constata o estudo.

Amigos influentes – No Brasil, crédito para empresas de pequeno porte é uma gincana de trombadas, confirmando a constatação do estudo de que “na maioria dos países em desenvolvimento experimentam-se frustração e, provavelmente, rejeição, a menos que se tenha amigos influentes”. Por que é tão difícil obter crédito nesses países? Um dos obstáculos é a ausência de proteção legal para os credores. Exemplo: para o credor que deseja receber um empréstimo não pago na forma de equipamentos, o prazo no Brasil e no Chile pode chegar a quatro anos, enquanto na Alemanha, Irlanda, Tunísia e nos Estados Unidos leva uma semana. Sobre a regulamentação do trabalho para contratar, demitir e negociar condições, o estudo constata que é mais severa no Brasil, México, Panamá, Paraguai, Peru, na Venezuela, em Angola, Moçambique e Portugal. É menos severa na Áustria, Dinamarca, Malásia, Nova Zelândia, em Hong Kong, Cingapura, no Reino Unido e nos EUA. Detalhe: mais severa, nesse caso, não significa ser melhor.

No geral, a análise do banco chegou a três conclusões principais:
que a regulamentação dos negócios varia bastante de país para país;
que os países ricos implementam regulamentações de forma mais consistente e apropriada do que as nações pobres; e, por último,
que regulamentações mal elaboradas implicam resultados muito ruins.
Tão ruins quanto os que assistimos com os aposentados idosos. “No Brasil, a Receita Federal é de Primeiro Mundo e a despesa é manual, a bico de pena”, diz o presidente da Abdib.