12/11/2003 - 10:00
O advogado Clóvis Ramalhete, autor do projeto que garantiu a ampla anistia política de 1979, costumava dizer que “a democracia só estará realmente consolidada quando juízes, banqueiros e funcionários públicos corruptos começarem a se sentar no banco dos réus e ressarcir o patrimônio público”. Nos últimos dias, duas importantes condenações de criminosos de colarinho engomado reforçaram a idéia de que pode estar próxima a democracia vislumbrada por Ramalhete. Em decisão histórica, em 31 de outubro, o juiz Lafredo Lisboa, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, mandou para trás das grades o famoso Rodrigo Silveirinha, ex-subsecretário de administração do governo fluminense, junto com 21 ilustres personagens do escândalo do propinoduto, por corrupção e lavagem de dinheiro. A quadrilha, formada por fiscais, auditores federais e empresários do futebol, foi denunciada ao País em janeiro por ISTOÉ. Em São Paulo, agentes federais e procuradores da República da chamada Operação Anaconda arrastaram para a prisão dois delegados e um agente da própria Polícia Federal, três advogados e a auditora aposentada Norma Regina Cunha, ex-mulher do juiz federal João Carlos da Rocha Mattos. A auditora e o magistrado, que também é processado, são acusados de vender sentenças judiciais a corruptos e contrabandistas. Notícias alvissareiras como essas trazem sempre à tona a indagação: o Brasil está mesmo mudando ou são episódios isolados, exceções que confirmam a regra da impunidade?
O cientista político Antonio Carlos Peixoto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), não tem dúvidas de que a corrupção no setor público não é mais tolerada, a Justiça mostra eficiência e agilidade e “o Brasil já é outro em termos de combate à corrupção”. Mais cética, a pesquisadora Maria Celina d’Araujo, do Centro de Pesquisa de Política Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas, ainda não vê “uma mudança no trato do dinheiro público”, mas reconhece a existência de um clamor popular contra a impunidade e a lei da vantagem. E faz uma pergunta que está na cabeça dos brasileiros desde que o impeachment de Fernando Collor se apresentou como marco inaugural de uma nova era: por que os corruptos ainda arrombam sem nenhuma cerimônia os cofres públicos, sem medo de punição?
A impressão de que não seriam atingidos pela lei levou os personagens da Anaconda a estrepolias inacreditáveis. É a mesma sensação que assalta o País de tempos em tempos, a cada novo escândalo. Perplexo, o brasileiro comum, aquele que trabalha e traz sua contabilidade na ponta do lápis, se vê mais uma vez discutindo sobre cifras absolutamente estranhas ao seu cotidiano e ouvindo gravações surrealistas. O mundo subterrâneo da corrupção aflora de novo e, com ele, o sentimento de incredulidade e a suspeita de que ainda há muita sujeira a ser descoberta. A imagem mais emblemática do novo escândalo foi a de policiais federais deixando o apartamento da ex-mulher do juiz, no centro de São Paulo, com um saco recheado com cerca de US$ 550 mil. No mesmo apartamento, a polícia apreendeu dois quilos de ouro e cópias de 42 fitas com gravações telefônicas.
Em parceria com o juiz e ex-marido, Norma é acusada de integrar
um megaesquema de tráfico de influência, corrupção e venda de sentenças. Em São Paulo, as investigações giram ainda em torno de outros dois juízes federais – os irmãos Casem e Ali Mazloum –,
delegados e agentes da PF, advogados e empresários. No material apreendido em 15 endereços estão 250 quilos de armamentos,
incluindo um fuzil AR-15 com mira a laser. A Anaconda começou em
São Paulo com base em uma denúncia anônima há 18 meses, mas o esquema se alastra, segundo a PF, por Alagoas, Mato Grosso, Pará e
Rio Grande do Sul. O rastreamento do bando já chegou a imóveis nos Estados Unidos e, como de praxe, a depósitos em outros países. O próprio apartamento no qual o juiz Rocha Mattos mora sem pagar aluguel, no elegante bairro de Higienópolis, está na mira da polícia. A dona do imóvel é uma empresa offshore uruguaia, da qual um dos advogados denunciados, Carlos Alberto da Costa e Silva, é procurador.
Paixão total – O juiz já esteve sob investigação em outras ocasiões. Em 1992, foi acusado de tentar vender uma sentença de absolvição por US$ 2 mil. Três anos antes, um episódio polêmico evidenciou o grau de relacionamento entre Rocha Mattos e Norma. Eles se conheceram em 1988, quando a auditora foi destacada pela Receita Federal para levantar os processos de bens apreendidos que poderiam ser leiloados. A paixão instantânea que os uniu logo se misturou aos procedimentos da Justiça Federal. Acusado de extorquir US$ 10 mil de um empresário, um colega de Norma, auditor da Receita, foi preso pela PF, que gravara provas telefônicas. Acionado por Norma, que compareceu ao prédio da Justiça com outros auditores, Rocha Mattos assumiu um plantão que não era seu, requisitou à polícia cópia do flagrante e determinou a liberação do auditor. Na sequência, mandou destruir as gravações. “Tecnicamente, o procedimento não podia ser questionado, pois o flagrante não fora no momento em que o auditor fez a proposta e sim ao receber o dinheiro”, analisa um colega do juiz. “Mas qualquer juiz mandaria o caso para o Ministério Público e esperaria o advogado requisitar oficialmente a libertação do cliente.” Catorze anos depois, Rocha Mattos e Norma são apontados como os principais articuladores do esquema de venda de sentenças que escandaliza o País. Suas ações reforçam a velha pergunta: até quando a certeza de impunidade vai produzir escândalos na esfera pública?
O presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), dom Geraldo Magela, acha que as prisões do propinoduto e da Anaconda não são suficientes para afirmar que o Brasil encerrou a fase histórica de tolerância com a ladroagem. “Ainda há muito por fazer para se evitar os desvios éticos, pois a corrupção atingiu um patamar sufocante”, diz. Para ele, a impunidade compromete a paz social no País. A grande incidência de desvios praticados por quem deveria cuidar do bem público, segundo o bispo, “exige uma obra de correção e de formação para que os cidadãos não se deixem corromper e não corrompam”. O problema é que uma mudança cultural de tal envergadura exige um prazo bem mais longo do que gostaria a sociedade.
Entre os fatores que vêm contribuindo para a redução de finais felizes para o crime de alto nível no Brasil certamente está o fortalecimento
do Ministério Público. Com poderes ampliados em 1988, procuradores e promotores têm estrelado as ações espetaculares de caça aos corruptos. O cientista político Antonio Carlos Peixoto é um dos que ressaltam “o papel decisivo exercido pelo Ministério Público Federal no combate aos desvios éticos e à corrupção no setor público”. Do lado dos advogados, no entanto, o reconhecimento da importância da ação do MP é sempre acompanhado de advertências sobre a possibilidade de abuso de poder e de injustiças embaladas pela opinião pública. Para o criminalista Carlos Eduardo Machado, “é fundamental uma ampla investigação para que
a impunidade seja evitada, sem injustiça de nenhum tipo”. Seu colega Edson Ribeiro, da Comissão Permanente de Direito Penal do Instituto
dos Advogados Brasileiros (IAB), reconhece o forte clamor nacional contra a corrupção, mas também ressalva: “O risco é de esta pressão popular causar sentenças que não se confirmem na segunda e terceira instâncias, por extrapolarem os limites da legislação penal, provocando uma frustração.”
O cientista político Clóvis Brigagão, da Universidade Cândido Mendes, está entre os que constatam uma expressiva redução da cultura da impunidade no Brasil. Para ele, a sociedade demonstra que já não aguenta a corrupção epidêmica e o engavetamento das denúncias,
mas a indignação ainda não é suficiente para clarear o horizonte.
“Ainda há hábitos antiéticos e ilegais no setor público que devem ser denunciados e punidos, e a cidadania brasileira ainda é vulnerável, o que em tese nos transforma em cidadãos de segunda classe.” Brigagão responsabiliza a impunidade pela sangria dos cofres públicos, que reduz as já escassas verbas para áreas essenciais, como saúde, educação e ciência. “São muitos bilhões desviados por corruptos.”
Cara quebrada – Reforçando a tese de que
o País já tomou o rumo certo e que a vitória
da honestidade é questão de tempo, os exemplos de peixes graúdos que confiavam
na impunidade e quebraram a cara realmente
se avolumam desde o impeachment de Collor. Uma das listas mais recheadas é a dos políticos. Em 1993, dez deputados perderam os mandatos por desviar o Orçamento da União. A queda por falta de decoro atingiu cabeças coroadas da República com a renúncia forçada, em maio de 2001, dos senadores Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda. Jader Barbalho também caiu do Senado, que presidira, em outubro do mesmo ano. É verdade que os três voltaram ao Congresso, eleitos no ano passado, mas o retorno “não compromete a importância da punição, que afetou a credibilidade deles”, afirma Brigagão.
O procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, enfatiza a necessidade de mais transparência no setor público e ressalta o papel dos procuradores no combate a desvios. Muitas vezes, os procuradores atuam com especialistas do Banco do Brasil, do Ministério da Justiça e
da Receita, desvendando fraudes, como no escândalo do Banestado, também denunciado por ISTOÉ. “Mais de 250 pessoas foram denunciadas e a investigação representou uma vitória expressiva da sociedade.”
Se a Anaconda condenar os juízes suspeitos, estará engrossando
uma categoria de presos que em outros tempos seria impensável. A condenação em 1991 do juiz Nestor José do Nascimento por fraude contra o INSS é um símbolo. Nestor é o mais “ilustre” dos fraudadores
do INSS que a Justiça trancafiou para o bem do serviço público. Outro
foi Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, condenado em 2000 pelo desvio
de R$ 169 milhões do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo. Presidiários de nível social como Nicolau e Nestor são uma minoria
muito inexpressiva no sistema penitenciário nacional. Se algum dia
não restar mais dúvida de que o País mudou, é provável que o índice
de corruptos será bem mais significativo nas estatísticas da população carcerária brasileira.
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