A dengue assusta o Brasil desde o início do ano. Mas agora o País deverá viver o momento mais crítico da epidemia. Espera-se nas próximas semanas um aumento do número de casos da versão mais grave e algumas vezes fatal da doença, a dengue hemorrágica. O motivo do alerta é o retorno ao lar dos turistas que viajaram no Carnaval. Eles podem ter sido picados em outros pontos do País pelo Aedes aegypti, o mosquito transmissor da doença, contaminado pelo vírus do tipo 3. Esse microorganismo pode levar à dengue hemorrágica se o paciente já foi picado anteriormente por mosquitos portadores dos subtipos 1 e 2 do vírus. E, como o Brasil vive epidemias há 16 anos, grande parte da população já foi exposta a eles. Seriam, portanto, potenciais candidatos à dengue hemorrágica se infectados pelo vírus do tipo 3.

Além dessa ameaça, o País ainda assiste ao alastramento da epidemia em velocidade assustadora. No Estado de São Paulo, 485 dos 645 municípios têm focos do mosquito. No Rio de Janeiro, a Secretaria Municipal de Saúde confirmou, em um único dia da semana passada, 1.382 casos. Até quinta-feira 21,14 pessoas haviam morrido vítimas de dengue hemorrágica no Estado fluminense só neste ano. É a metade do total de óbitos (28) registrados em todo o ano passado no Brasil. Também surgiram os dois primeiros casos fatais em São Paulo e um no Paraná. Isso mostra que o subtipo 3 do vírus está mesmo se espalhando.

Uma das vítimas mais recentes é a cantora Zélia Duncan. Ela passou sete dias hospitalizada. Embora tenha contraído a dengue clássica, chegou à Casa de Saúde São Vicente, no Rio, de ambulância. “Acordei com uma dor de cabeça infernal e um mal estar inacreditável. Virei um traste humano com a doença”, lembra. Agora, ela teme a dengue hemorrágica. “Comprarei citronela e o que mais pintar. Somos órfãos neste país de irresponsáveis”, critica. A revolta evidentemente é maior entre quem perdeu alguém, vítima da doença. A dona-de-casa carioca Dalma Ramos, 51 anos, por exemplo, morreu no sábado 17, deixando sua família profundamente abalada. “Ficamos chocados. Foi tudo muito rápido”, conta a filha Monique, 17 anos. A outra filha, Michele, 16, sofre calada. “Uma das horas mais difíceis é quando acordo. Minha mãe sempre entrava no meu quarto cantando. Tudo me faz lembrar dela”, revolta-se Monique.

No Rio, onde se estima que o número de casos neste ano ultrapasse os 100 mil, a doença impôs um clima de medo e modificou a rotina das instituições de saúde. O sofisticado hospital Barra D’Or recebe cerca de 300 pacientes por dia com suspeita da doença. Contratou mais nove médicos e três enfermeiros e concentrou o atendimento
na emergência.

No Lourenço Jorge, hospital público da Barra, o conforto é menor, mas o atendimento é mais rápido. O corretor de imóveis Fábio Chaves, 27 anos, procurou o hospital três dias depois de começar a sentir os sintomas. “Cheguei aqui e quase não conseguia ficar em pé”, lembra. O diretor da casa, o ginecologista Paulo Marçal, 51 anos, entende bem seus doentes por já ter sido vítima da dengue clássica e da hemorrágica. “Tive dor de cabeça, inapetência e meu corpo estava com pontos de sangramento”, relata. Depois de tomar parte do cotidiano do brasileiro, a dengue vai virar tema de novela. Glória Perez adere à campanha pelo combate à doença em O clone. Khadija (Carla Diaz), filha de Jade (Giovanna Antonelli), contrairá a doença. A autora também aproveita para dar toques educativos por meio de Dona Jura (Solange Couto). “A situação está tão crítica que é preciso contribuir em todas as frentes”, comenta Glória.

Na verdade, a população se pergunta por que o descontrole chegou a tal ponto. A opinião dos especialistas é de que a descontinuidade do combate ao mosquito provocou a tragédia anunciada. As epidemias vinham se manifestando no verão, especialmente os mais chuvosos, e entrando em declínio em maio. É quando as autoridades abandonavam as precauções que deveriam ser mantidas o ano todo. Mesmo que as fêmeas do Aedes aegypti, as transmissoras, desapareçam com a queda da temperatura, seus ovos ficam depositados em criadouros e têm capacidade de sobreviver por um ano, mesmo sem água. “Eles crescem em progressão geométrica. Devem haver bilhões de mosquitos no Rio”, estima o especialista em insetos Anthonny Guimarães, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O estranho é que muita gente diz ter previsto a calamidade atual. O secretário estadual de Saúde do Rio, Gilson Cantarino, é um deles. Afirma que anteviu a epidemia da dengue do tipo 3 há um ano, quando o vírus foi identificado pelo virologista Hermann Shartzmayr, da Fiocruz (o mesmo Hermann identificou os vírus 1 e 2 e agora padece pela segunda vez de dengue). “É preciso estabilidade no tratamento dos focos e nas campanhas educativas”, prega Cantarino. Quando saiu da Secretaria Municipal de Saúde, em abril de 2001, o sanitarista Sérgio Arouca também deixou um relatório alertando sobre a epidemia, ignorado por seus sucessores. “Houve um descompasso entre governo federal e município”, justifica Oscar Berro, diretor do Laboratório de referência do Estado, o Noel Nutels.

Infelizmente, esse descompasso a que se refere o especialista parece continuar dando a tônica das relações entre os níveis de governo. No Rio, por exemplo, além da ajuda de agentes do Exército e da Marinha, estão sendo contratadas 15 mil pessoas para combater o mosquito no Estado. Mas falta no Estado fluminense um órgão ou comissão que coordene a luta contra a ameaça, o que gera uma confusão administrativa que só rouba fôlego na briga contra a epidemia. Na cerimônia em que se despediu do Ministério da Saúde, o ex-ministro José Serra quis amenizar as críticas à atuação do governo federal tentando dividir as responsabilidades. “O problema não é nem federal, nem estadual, nem municipal. É de todos”, disse. Serra também se defendeu das denúncias de que o governo teria destinado menos verbas contra a dengue durante os últimos anos. De acordo com o ministro, em 1996 foram gastos cerca de R$ 60 milhões. Em 2001, a verba teria pulado para R$ 500 milhões. No entanto, apesar das justificativas de Serra, é possível constatar dificuldades básicas em relação ao controle da doença no próprio Ministério. Por três dias, ISTOÉ tentou obter com o governo federal os números totais de casos no País neste ano. Recebeu como resposta que os dados, importantes para dimensionar o tamanho da epidemia no Brasil, aguardavam liberação de Mauro Costa, presidente da recém-criada Agência Federal de Prevenção e Controle de Doenças. O detalhe é que ele comandava a Funasa, justamente o órgão substituído pela nova agência e até então centralizador das estatísticas nacionais.

Por falta de uma política duradoura contra a doença, o que se faz agora é correr contra o prejuízo. No Rio, por exemplo, será realizado no dia 9 de março o chamado Dia D de luta contra a dengue. Embora tardia, a iniciativa visa aumentar a adesão da população no combate ao mosquito. Em São Paulo, o dia D foi na semana passada. “Vamos abrir 1,2 mil escolas municipais para tirar dúvidas, vender tampas de caixa-d’água a preço de custo e incentivar a luta contra o mosquito”, diz o secretário municipal de Saúde, o sanitarista Eduardo Jorge. Ele faz um balanço otimista e acha que a epidemia está sob controle na cidade. “Nós nos preparamos para conter a dengue desde o ano passado, quando visitamos mais de dois milhões de residências. Este ano, em janeiro, tivemos 276 casos, dos quais apenas dez pessoas foram picadas na cidade. Os outros casos são importados”, afirma.

Na capital paulista, o mosquito se dispersa em direção ao centro, zona sul e oeste. Porém, os bairros mais atingidos continuam sendo os da zona norte, como a Cachoeirinha e o Jaçanã. “Achamos 80% dos focos do mosquito nas residências, em criadouros gerados pelo homem”, diz o biólogo Moacir Dal Bon, 43 anos, responsável pelos 240 agentes de saúde e outros cinco biólogos designados pelo Programa de Combate e Prevenção da Dengue, criado pela prefeitura, para a área norte. Eles recebem uma média de 30 denúncias por dia sobre possíveis focos de mosquito e inspecionam regularmente pontos de risco, como cemitérios e desmanches. Uma dessas vistorias de rotina localizou larvas e mosquitos na borracharia de Ernesto Araújo, 87 anos, no Jaçanã. O local estava virando berçário de larvas e de mosquitos. No primeiro encontro com os agentes, ele foi orientado pela bióloga Neusi Rolim sobre a forma correta de eliminar os criadouros. Devia enxugar os pneus, jogar sabão em pó dentro e cobri-los. Dois dias depois, a bióloga voltou e insistiu.

Na terceira visita, o biólogo Dal Bon avisou Ernesto que poderia notificá-lo e multá-lo se não eliminasse os focos de mosquito. Foi o que funcionou. “Exercemos uma ação educativa. Só vamos multar se não tiver jeito”, diz o biólogo. Mudar hábitos é, de fato, uma das batalhas mais difíceis na luta contra a dengue. De dez casas visitadas pelos agentes de saúde, apenas em uma o morador eliminou os pratinhos de planta e o entulho, outro dos locais favoritos do mosquito para deposição dos ovos. A dona-de-casa Maria Antônia de Souza, por exemplo, ficou espantada quando os agentes de saúde acharam criadouros no entulho ao lado da sua casa, um depósito de garrafas, caixas e lona de uma quadra de aluguel de futebol society. “Minhas filhas brincam aqui. Eu queria mesmo que a fiscalização viesse”, diz ela. Esse comportamento passivo em relação à dengue é mais um entrave para conter a epidemia. “Muita gente fica esperando a chegada dos agentes de saúde para revirar o lixo do fundo do quintal e localizar criadouros. A hora é de agir antes que a epidemia cresça”, diz a biologa Neusi.