27/02/2002 - 10:00
Na semana passada o governo de Washington operou dois prodígios. Ao mesmo tempo que ressuscitou um morto-vivo, conseguiu unir em protestos aliados e inimigos americanos. O coronel Oliver North, oficial graduado da Casa Branca de Ronald Reagan no início dos anos 80 e mentiroso juramentado, capaz de cometer perjúrio diante da comissão do Senado dos Estados Unidos, parecia definitivamente enterrado na vala comum dos rejeitados. Mas seu espectro voltou a assombrar a política do país com as divulgações de duas novas medidas engendradas pela administração George W. Bush. A primeira, já sacramentada, transforma em assunto oficial os sequestros de americanos, por motivos políticos ou mera bandidagem, em qualquer parte do planeta. De agora em diante, o Subgrupo de Sequestrados, um órgão ligado ao todo-poderoso Conselho de Segurança Nacional, irá estudar cada caso de sequestro de cidadãos do país, podendo decidir pelo emprego de ações militares internacionais para tentar a libertação. A confirmação, na quinta-feira 21, da morte do jornalista Daniel Pearl, do Wall Street Journal, sequestrado por terroristas islâmicos do Paquistão desde 23 de janeiro, deverá facilitar as coisas para Bush. Na sexta-feira 22, em visita à China, Bush declarou que “aqueles que se engajaram em atos criminosos e bárbaros precisam saber que esses crimes apenas prejudicam a sua causa, e somente fazem aumentar a determinação dos EUA de limpar o mundo desses agentes do terror”. A segunda notícia trata de um plano, ainda não aprovado, saído do novíssimo Departamento de Influência Estratégica, ligado ao Pentágono e criado depois dos atentados de setembro passado. A idéia é a de confundir inimigos e influenciar a opinião pública de outros países, através da divulgação de notícias – verdadeiras ou falsas. Na prática, uma campanha de desinformação utilizando os serviços de agências de relações públicas e boletins enganosos para manipular a mídia internacional. O coronel North fez tudo isso há duas décadas e sua história tem final infeliz.
De concreto, até agora, existe apenas o restabelecimento de competência do governo federal em casos de sequestros de cidadãos americanos. Antes disso, somente os episódios de raptos de funcionários públicos e militares mereciam tal atenção. Os civis estavam entregues à própria sorte, sendo que as famílias eram desaconselhadas a pagar resgate e as empresas, proibidas de fazer o mesmo. A nova iniciativa libera as negociações, mas coloca na equação o Subgrupo de Sequestrados. Esse órgão decidirá onde, como e quando será disparada a ação governamental. Os modus operandi dessas intervenções são variados e vão do explícito ao nebuloso. Por exemplo: o governo americano pode oferecer ajuda logística às forças policiais de um país onde houve sequestro de americano, caso essa ajuda seja requerida. Nos locais onde já existe uma indústria de raptos – Colômbia e Filipinas – os EUA vão oferecer treinamento e recursos materiais para combater esse tipo de crime. Também será dada assistência a empresas que têm funcionários vitimados e às famílias dos sequestrados.
Há dúvidas, porém, sobre os limites impostos a interferências nessa área. Operações militares de resgate, empregando comandos de forças especiais do tipo Delta Force, Seals e Rangers, estão incluídas no cardápio de opções. Mas, como disse a ISTOÉ a porta-voz do Pentágono, Victoria Clarke, “as opções militares e de inteligência para a libertação de sequestrados vão permanecer secretas, como parte de assunto classificado da Diretiva Presidencial de Segurança Nacional”. Assim, é possível imaginar que ações militares envolvendo tropas especiais americanas, que dispensam autorização do Congresso, em território estrangeiro, mesmo sem a anuência desses países, não estão descartadas. “Essa decisão me parece inócua. Casos de sequestros se resolvem basicamente com inteligência, que é um fator local. Sem isso, a capacidade bélica não adianta nada. A não ser que seja uma situação como em Entebbe”, disse a ISTOÉ o deputado Fernando Gabeira (PT-RJ), que, como guerrilheiro, participou em 1969 do sequestro do então embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrik.
Apoio interno – Uma situação dessas pode ferir brios nacionalistas no mundo, mas são muito bem-vindas por cidadãos americanos. E já vêm tarde, principalmente para as famílias de Pearl e de Ronald Sander, este morto em janeiro de 2001 no Equador por uma gangue de ex-guerrilheiros esquerdistas transformados em bandidos. “Infelizmente, Ronald não contou com uma força-tarefa que o libertasse. Quando falam em desrespeito às leis internacionais, em caso de operações de resgate, tenho vontade de gritar. As leis internacionais supostamente devem proteger as pessoas. As leis internacionais são desrespeitadas por aqueles que sequestram e matam. Meu marido morreu porque era americano e ainda colocaram um cartaz nele dizendo: ‘Sou gringo!’ É preciso que esses bandidos ou fanáticos religiosos saibam que os EUA vão reagir às suas agressões”, disse Sheila Sander a ISTOÉ.
Na verdade, o caso de Sander teve participação ativa do governo dos EUA. A história dessas intervenções, porém, não justificam medidas impulsivas. Em 1983, Ronald Reagan mandou os fuzileiros navais de seu país invadir Granada, no Caribe, com a justificativa de libertar estudantes de medicina americanos mantidos cativos no local. Como pano de fundo havia o fato de o governo da ilhota ser esquerdista e sofrer influência de Cuba. Mas o melhor exemplo de insucesso de vôos da águia americana neste terreno pantanoso se deu com o presidente Jimmy Carter (1977-1981). Ele autorizou, em 1980, uma operação de resgate dos funcionários da embaixada dos EUA mantidos reféns por milícias iranianas em Teerã. A ação foi um fracasso, com parte da equipe de resgate morta num acidente bizarro no deserto do Irã.
Depois de suceder a Carter, Reagan decidiu negociar na surdina a libertação dos reféns da embaixada de Teerã. A incumbência desta manobra ficou a cargo de um coronel linha-dura dos fuzileiros navais. Uma triangulação de vendas de armas foi montada. O Irã receberia o material bélico e peças de reposição para seu arsenal, libertando por sua vez os reféns e ainda depositando uma boa soma de dólares em contas secretas. Esse dinheiro serviria para financiar os “contras”, a guerrilha anti-sandinista na Nicarágua, um dos projetos acalentados por Reagan. O problema é que toda essa ginástica de geopolítica era absolutamente ilegal. Não só o Congresso americano e a ONU haviam decretado o embargo de negócios com o Irã, mas o Legislativo ainda havia proibido o financiamento secreto de operações aos “contras”. Além disso, o próprio presidente determinara uma política de não negociação com sequestradores e terroristas. A trama foi descoberta no segundo mandato de Reagan, anos depois de ter sido efetuada. O presidente se livrou das acusações dizendo não saber de nada, e a responsabilidade ficou com o coronel Oliver North.
Diante do Congresso, North mentiu sobre a operação. De acordo com os planos do Departamento de Influência Estratégica, sua atitude estaria agora perdoada. Contanto, é claro, que fosse dita a estrangeiros. A campanha de desinformação pretendida pelo órgão também não representa muita novidade, uma vez que a CIA usou muito desse expediente. O Chile do socialista Salvador Allende (1970-1973) e a Guatemala do reformista coronel Jacobo Árbenz (1951-1954) são bons exemplos. E foi depois que informações falsas passadas por esse órgão à mídia estrangeira chegaram aos jornais e às tevês americanas que o Congresso aprovou uma lei proibindo essa prática quando as mentiras ditas além-fronteira podem influir no noticiário dos EUA. O secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, negou que o Pentágono, ou ele próprio, tenham proferido inverdades até agora. Mas que os planos para que mentiras sejam usadas na guerra da publicidade sejam verdadeiros, ninguém duvida.