05/11/2003 - 10:00
Com a morte da escritora cearense Rachel de Queiroz, ocorrida na madrugada da terça-feira 4, no Rio de Janeiro, o Brasil perdeu a primeira-dama de sua literatura. Talvez a autora de O quinze, Memorial de Maria Moura e mais duas dezenas de livros não gostasse do título, porque sempre foi o avesso da fama e da badalação. “Sou desligada das glórias e do pó dourado que cercam as reputações literárias”, declarou a ISTOÉ com sua simplicidade peculiar, pouco antes de completar 90 anos, em 2000. A modéstia, que nada tinha de falsa, era um de seus encantos. Morreu dormindo, de infarto, no 26º aniversário de sua triunfal entrada na Academia Brasileira de Letras como a primeira imortal de saias. O pontapé para o sucesso foi o primeiro romance, O quinze, de 1930, uma árida descrição da seca nordestina que causou espanto à crítica especializada, sobretudo por ter saído da pena de uma jovem de 19 anos. Com essa mesma idade, já trabalhava como professora e jornalista no periódico O ceará, o que lhe permitiu comprar um carro. Passou no teste feminista, mas foi reprovada pelo pai, que tentou ensiná-la a dirigir. “Além de míope, é louca”, foi seu veredicto.
Não era um feminismo de caso pensado, mas uma consequência de idéias bastante modernas para a época. No início dos anos 30, Rachel se filiou ao Partido Comunista, mas desligou-se pouco depois, decepcionada com a tentativa da direção do partido de mudar o texto de seu segundo livro, João Miguel. A ousadia intelectual a conduziu algumas vezes para atrás das grades. Em uma delas chegou a dividir a cela com prostitutas que tentaram ensinar à inquieta escritora o ofício mais antigo do mundo. Flertava com o trotskismo e, paradoxalmente, chegou mais tarde a ser acusada de direitista por sua simpatia pelo marechal Humberto Castello Branco, seu conterrâneo.
Rachel de Queiroz deixou 26 livros individuais e quatro em parceria,
dois deles com a irmã caçula Maria Luiza. As duas dividiram a biografia Tantos anos (1998) e Receitas do Não me Deixes (1999), contando saborosas histórias da culinária da fazenda Não me Deixes, no Ceará,
sua terra natal, onde batia o ponto todo ano. Era na fazenda que
punha em prática seus maiores prazeres – mergulhar no açude, pilotar a cozinha e preencher o silêncio da noite jogando conversa fora com os caboclos. No apartamento do Leblon, zona sul do Rio, onde viveu as últimas décadas, praticamente só saía para o chá das cinco na
Academia Brasileira de Letras.
Depois que ficou viúva do segundo casamento, sua maior companheira passou a ser a irmã Maria Luiza, cujos filhos Rachel considerava seus, assim como os netos e bisnetos. Desde 1999, repetia que não pretendia lançar mais livros, embora continuasse lúcida e ativa, mantendo, até março, uma coluna semanal no jornal O Estado de S. Paulo. Torcedora
do Vasco, ela ainda entrava na cozinha para preparar cozidos e feijoadas em ocasiões especiais. Estaria completando 93 anos no próximo dia 17 e tinha consciência de onde vinha seu vigor. “Gosto da humanidade. É o que me mantém viva.”