05/11/2003 - 10:00
O pianista João Carlos Martins é um obstinado. A fama como um dos maiores intérpretes do compositor alemão Johann Sebastian Bach (1685-1750) continua a render-lhe respeito em todo o mundo. Nos sonhos, ele ainda se vê tocando para grandes platéias. Quando acorda, os dedos se recusam a esticar sobre as teclas do piano. Como se cumprissem uma sina trágica, suas mãos foram afetadas por dois acidentes distintos, separados por quase três décadas. Afiado pela dor, o pianista não desiste. Apenas com os dedos polegares e indicadores ensaia com entusiasmo de iniciante uma composição do americano Chris Brubeck baseada em dois prelúdios de Bach. Com a peça, o pianista pretende encerrar a carreira de concertista na segunda-feira 17, na Sala São Paulo, na capital paulista. Aos 63 anos, ele abandona o piano, mas continua na música. Na mesma noite, estréia na batuta.
Vai reger o Concerto número 3 de Brandemburgo, de Bach, diante de
uma orquestra de câmara formada especialmente para a ocasião. De quebra, enfrenta um estigma. No Brasil, Martins não costuma ser lembrado como o músico de perseverança extrema e talento raro, mas pelo deslize de ter se envolvido com arrecadação irregular de recursos para campanhas políticas. É a surrada cantilena do negativismo, que leva muitos brasileiros a notar no céu a poeira antes do sol.
De qualquer forma, o talento aprimorado de Martins é suficiente para colocá-lo em seu devido lugar. Nessa nova fase, estuda regência por conta própria, praticando com músicos da Orquestra Jovem Baccarelli, formada por adolescentes de comunidades carentes. Na semana passada, antes do primeiro acorde, verbalizou sua interpretação do concerto que dirigirá na Sala São Paulo. “A idéia do começo é um Bach com uma convicção louca. Um homem que veio do século XVIII e ficou”, disse. “A gente toca com tudo.” Assim que a primeira execução termina, ele pede que avaliem seu desempenho. Constrangidos, os garotos desviam o olhar para os instrumentos, o chão, o infinito… O maestro Elias Moreira aponta um detalhe importante. “Se você respirar antes do acorde final, eles vão responder melhor”, orienta. Martins não se faz de rogado. Coloca em prática a instrução. Uma. Duas. Três vezes. Os garotos se empenham nas repetições. “Ele tem a música dentro dele”, comenta o primeiro violino Ezequiel Mattos, 20 anos.
Futebol no Central Park – Embora tenha tocado com as melhores orquestras do mundo, Martins só pensou em reger depois de assistir a cenas gravadas para o documentário A paixão segundo Martins, da diretora Irene Langemann. Na produção alemã, que será lançada em fevereiro nos Estados Unidos e na Europa, e chegará em março ao Brasil, ele aparece, com largos gestos, orientando pianistas da renomada Julliard School, de Nova York. Nas outras duas ocasiões que se separou do piano, Martins fez incursões pelo mundo das finanças e da política. “Foram agressões que provoquei a mim mesmo”, confidencia. “Desta
vez, nada me separa da música.”
O primeiro baque em sua carreira aconteceu antes de completar 26 anos, época em que alternava turnês internacionais com jogos de futebol no Central Park, em Nova York, onde morava. Numa dessas partidas, caiu sobre uma pedrinha pontiaguda, que entrou em seu braço, afetando nervos da mão direita. Um artigo de primeira página do jornal Washington Post de 27 de março de 1966 dá a dimensão do estrago. “João Carlos Martins deu um recital de piano ontem em condições físicas que teriam feito desistir muitos outros pianistas. Na primeira parte, quando ele tocou quatro prelúdios e fugas do Cravo bem temperado, de Bach, e a Sonata, de Ginastera, Martins tinha suportes de metal nos dedos médio, anular e mínimo da mão direita”, descreveu o crítico Paul Hume.
Quatro anos e muitos tratamentos depois, Martins trocou os concertos pelo mercado financeiro, trabalhando com Roberto Campos. Em 1978, volta ao piano até que, em 1985, abalado pelas dores, larga a música. Em São Paulo, abre com um amigo a empresa Paubrasil Engenharia e Montagem, que teria passado incólume pelo ramo de manutenção e limpeza industrial se seus livros não tivessem sido usados pelo próprio pianista para registrar doações ilegais para as campanhas de 1990 e 1992 do ex-governador Paulo Maluf. Martins havia atuado como caixa de campanha de Maluf, de quem fora secretário de Cultura. “Não era dinheiro de governo. Era dinheiro da iniciativa privada. Mas era errado, porque pessoas jurídicas não podiam contribuir para campanhas políticas naquela época”, discorre no documentário. “Eu paguei um preço muito alto. Há dez anos, tudo o que faço pela música tem importância nos Estados Unidos, na Alemanha, mas não tem importância no meu país”, lamenta, no filme, sem disfarçar as lágrimas.
A casa dos sete pianos – Na semana passada, Martins também se emocionou ao falar a ISTOÉ sobre o escândalo Paubrasil. “Aproveitando a onda, um crítico de música resolveu me denegrir como pianista no jornal O Estado de S. Paulo”, lembrou. Enrolado até o pescoço com a Justiça, Martins não respondeu ao ataque, mas teve uma enorme surpresa ao abrir a edição seguinte do mesmo jornal. “Lá estava um artigo do meu pai, então com 96 anos, lembrando minha atuação como pianista e tudo o que eu já tinha feito pelo nosso país no Exterior”, conta, entre soluços, o pianista. Naquela mesma noite, Martins visitou o pai e prometeu realizar um sonho da adolescência: gravar as obras completas de Bach. A primeira parte da empreitada – dez CDs – já havia sido executada em Los Angeles, nos Estados Unidos, entre 1979 e 1983.
Em maio de 1995, o ritmo das gravações era dos melhores quando a tragédia se abateu de novo sobre o pianista em Sófia, na Bulgária.
“Caí na besteira de reagir a um assalto”, lembra. “Bateram com uma
barra de ferro em minha cabeça, provocando lesão cerebral.” Com a
fala e a mão esquerda afetadas, o pianista passou por mais dois anos
de dolorosos tratamentos antes de completar a gravação, em 1997,
com outros 11 CDs. Em contrapartida, tornou-se o único intérprete do mundo a gravar toda a obra de Bach. É também o único músico não alemão a presidir um júri do Concurso Johann Sebastian Bach, que
a cada quatro anos revela talentos e celebra a grandiosidade do compositor em Leipzig, na Alemanha. O ineditismo levou Martins a
estrelar a capa da conceituada revista Der Spiegel, em maio do ano passado. A reportagem inspirou a diretora Irene Langemann a rodar o documentário A paixão segundo Martins, sobre a trajetória do pianista. Entre os muitos momentos de glória apresentados no documentário estão o concerto com a Orquestra Filarmônica Americana no tricentenário de Bach, no Carnegie Hall, em 1985.
O filme, porém, não revela que a própria entrada de Martins na música tem a ver com a dor. Seu pai, menino pobre que começou a trabalhar como gráfico aprendiz em Portugal, sonhava em ser pianista. Aos 12 anos, teve o dedo mínimo da mão direita decepado por uma máquina. Tempos depois, José Martins imigrou para o Brasil, fez fortuna vendendo matéria-prima aromática, mas não se esqueceu da música. Em casa, tinha sete pianos. Seus quatro filhos estudaram o instrumento, mas só o caçula João Carlos e José Eduardo, dois anos mais velho, se tornaram pianistas. Os outros irmãos seguiram carreiras distintas, embora sejam grandes apreciadores das artes. O primogênito Yves é tributarista, enquanto José Paulo tornou-se industrial, como o pai. Os quatro filhos de Martins, por sua vez, optaram por outras profissões – três são jornalistas e uma é advogada. O pianista, porém, ainda sonha em formar músicos muito especiais. Há quatro meses, pouco depois de assumir a direção da Faculdade de Música da Fiam, em São Paulo, ele começou uma parceria com organizações humanitárias e está investindo na formação musical
de meninos e meninas que passaram pela Febem. “Como pianista, cheguei ao fim da linha”, comenta. “Como músico, tenho muito a fazer.” Inspirado num projeto que deu certo na Venezuela, ele tenta descobrir novos talentos entre esses garotos, investir na educação deles e, no futuro, formar uma orquestra profissional, que possa se apresentar em qualquer sala de concerto.