05/11/2003 - 10:00
Um dos nossos mais experientes negociadores internacionais, o economista Roberto Giannetti da Fonseca acredita que a negociação sobre a participação do Brasil na Área de Livre Comércio das Américas (Alca) deve ser levada à exaustão. “A atitude de ceder sem contrapartida ou de não insistir na defesa das reivindicações brasileiras seria uma burrice.” Para o
ex-secretário executivo da Câmara de Comércio Exterior (Camex),
“em uma negociação como esta não se pode nem ignorar que existem possibilidades de convencimento, nem se pode admitir uma incapacidade de convencer os interlocutores”. Ele dá o exemplo de uma negociação que foi extremamente difícil, mas que teve um desfecho positivo:
“A quebra das patentes de remédios para certas epidemias em países pobres envolveu negociações que entraram pela madrugada.”
Giannetti é mais veemente ao falar das principais reivindicações do Brasil: “Queremos a mudança da lei para evitar o arbítrio do Departamento de Comércio americano sobre determinados mercados.” O economista argumenta que, sem evitar o diálogo, “a negociação sobre a Alca tem de ser insistente, na busca de um acordo que leve em conta os legítimos interesses brasileiros no mercado internacional”. Mesmo tendo comandado a Camex no governo Fernando Henrique Cardoso, Giannetti reconhece, nesta entrevista a ISTOÉ, que “o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem exercido uma expressiva liderança nas negociações contra o protecionismo internacional”.
Temos de levar essa negociação à exaustão, até por um dever de ofício. A atitude de não negociar seria uma burrice porque significaria ignorar que existem possibilidades de convencimento. Seria uma demonstração de fraqueza, de se considerar incapaz de convencer o interlocutor. Não podemos, também, ceder pura e simplesmente, sem negociar.
Nada de extraordinário. Nós queremos uma mudança na lei antidumping para evitar o arbítrio do Departamento de Comércio americano sobre determinados mercados. Na hora em que pretendemos reduzir o subsídio agrícola, que nos prejudica no preço da soja, do milho e do algodão, os preços desses produtos caem no mercado internacional de forma recorrente por conta do excesso de produção dos países desenvolvidos, que não fazem isso de forma competitiva.
Sem dúvida que é difícil. Não creio que seja mais dura
do que a da OMC. Mas na negociação da Alca o Brasil tem de insistir na defesa de propostas que são justas. Tem de haver uma contrapartida. Em reuniões desse tipo, você não pode ceder pensando que vai conseguir um acordo. Tem de negociar cada proposta, em quantas reuniões forem necessárias. O impasse às vezes é aparente. A falta
de um acordo no curto prazo não quer dizer que as negociações
tenham sido fechadas. Você tem de estar sempre pronto para conversar. Nesse ponto tem sido importante a linha adotada pelo governo, que não fecha os canais de negociação.
A reunião de setembro da OMC, em Cancún, mostrou que os países ricos, os europeus e os Estados Unidos, são insensíveis e parecem apostar no antagonismo e no caos. Eles demonstraram uma irracionalidade diante da reivindicação de nações como o Brasil de quebra do protecionismo adotado no mercado internacional. O Brasil já acabou com seus subsídios, abriu seu mercado a todas as nações, mas não houve reciprocidade em relação ao Brasil nem a outros países. Mas isso não quer dizer que não devemos insistir em um acordo para a Alca. Ainda que os americanos acabem não fazendo concessões.
Não muita. Mas temos de acreditar em acordos. Minha geração, dos anos 60, imaginava que no início deste novo milênio
poderia haver da parte dos ricos mais sensibilidade em relação a
nações que procuram, através do comércio internacional, de um
comércio mais aberto, superar problemas sociais e acabar com
bolsões de miséria. Mas confesso minha decepção com a reação de europeus e americanos. Pelo menos os países que sofrem esse bloqueio no mercado internacional estão se unindo. Na reunião de Cancún,
o Brasil exerceu uma liderança expressiva, ao lado da China, da Índia e da África do Sul. Aquela reunião foi um sinal marcante de que essas nações tendem a se unir para tentar provocar um degelo na política protecionista imposta pelos ricos. Esta é mais uma razão para se acreditar e insistir em um acordo justo para a Alca.
Os americanos querem um acordo para a Alca. Nós também queremos. O primeiro ponto de partida é comum. A negociação pode e deve ser feita com base nos interesses comuns. Tem de haver contrapartida. Senão, não é um acordo comercial.
Ele causa endividamento, pobreza, desigualdades sociais cada vez mais intensas e ameaçadoras. Enfim, uma situação que a
longo prazo não será, obviamente, boa para as nações em desenvolvimento, mas também não será conveniente para as nações ricas, tal a insegurança que vai causar. As nações ricas não podem
impor a pobreza aos países pobres para dominá-los. Tenho a esperança de que a união dos países pobres, como aconteceu em Cancún, torne este domínio mais difícil. Cancún não alcançou o seu objetivo de abrir o mercado para os pobres e emergentes, mas teve um significado relevante com a união dessas nações, e isso tem de ser considerado nas negociações da Alca.
Houve um retrocesso porque realmente a expectativa era de que fossem abertas brechas, veja só, brechas nesta nova cortina de ferro que é o protecionismo comercial dos ricos. A quebra de patentes de remédios para certas epidemias em países pobres, como os da África, criou uma expectativa de que o protecionismo fosse reduzido. Para a quebra de patentes de remédios foram necessárias discussões que vararam a madrugada. Mas o que se tem visto é uma frieza, uma insensibilidade dos ricos. As nações emergentes querem a redução dos subsídios e que não sejam aplicados em produtos para exportação, reivindicação perfeitamente justa.
É uma verdadeira farsa. O discurso do sr. Bush em defesa
do livre comércio nada tem a ver com a realidade. É algo que só serve para eles. É como se eles merecessem um tratamento generoso e nós, um tratamento periférico. É como se a vaca européia ou americana
fosse superior à vaca de outras nações ou comparada com cidadãos pobres de outros países. Os líderes do protecionismo comercial
continuam sendo os Estados Unidos, a União Européia e o Japão. Os americanos alegam que não abrem seu mercado porque os europeus
não o fazem. Mantêm seu protecionismo. É o jogo do empurra-empurra. Eles continuam a nos iludir e a nos enrolar.
Ela recebe um subsídio de US$ 4 mil por ano, ou seja:
mais do que a renda per capita dos seres humanos de nações em desenvolvimento. E veja só: agora mesmo os Estados Unidos estão colocando mais US$ 87 bilhões para manter a ocupação do Iraque. Enquanto isso, oito milhões de pessoas morrem de malária, de
hepatite C e de esquistossomose por ano. A ajuda dos países ricos
para o combate a essas doenças é de US$ 200 milhões anuais. Só
o Bill Gates doou algumas centenas de milhões de dólares para o
combate à malária. Mais do que a doação de cada país rico.
Inglaterra e Alemanha têm mais sensibilidade. Os mais resistentes à abertura de seus mercados são Estados Unidos, Itália, Espanha e França.
Sem dúvida. A condição de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU dá prestígio e o Brasil já merece ser admitido, mas não enche a barriga de ninguém. Não é possível a manutenção destas relações econômicas internacionais injustas, que penalizam países que já abriram seus mercados e são impedidos de comercializar seus produtos altamente competitivos, como o aço brasileiro. É preciso insistir nas pressões junto ao Congresso americano e ao Parlamento europeu.
As reuniões da OMC continuam em Doha, no Oriente Médio, até 2005. Estas negociações começaram em novembro de 2001, quando participei pela Camex. A inflexibilidade maior dos ricos é em relação aos produtos agrícolas dos emergentes. Eles adotam dois tipos de proteção: subsídio pago aos produtos deles e impedimento do acesso ao produto estrangeiro, ou seja, dos países em desenvolvimento.
É um mercado absolutamente aberto. Temos uma agricultura considerada a mais competitiva do mundo. O nosso clima é favorável, além de outros fatores. O Brasil tem o menor custo por tonelada dos
mais variados produtos. Carne, soja, açúcar, café, frango, camarão,
suco de laranja, algodão. Em 2003 ultrapassamos Estados Unidos e Austrália em carne. Estamos sendo, este ano, o maior exportador de carne e o segundo produtor. Em soja também somos o primeiro exportador e o segundo produtor. De café, açúcar e suco de laranja o Brasil é o maior produtor e o maior exportador. De frango somos o segundo produtor e o segundo exportador.
Estão sim. O Banco Mundial e FMI defendem a abertura
dos mercados. A ala conservadora dos países ricos é que impede a abertura. Politicamente, internamente, esta política contraria os interesses da maioria. A população empregada na área rural na
Europa e nos Estados Unidos representa só 5% da população. O que
os políticos destes países não vêem ou não querem ver é que isso prejudica a população deles, em sua maioria empregada na indústria e serviços, e que poderia ter muito mais demanda nos países em desenvolvimento se tivessem seus produtos nos países em desenvolvimento. Parece óbvio, mas eles não compreendem.
Ainda precisamos e podemos melhorar muito a nossa capacidade de competir no mercado internacional. Se tivéssemos uma infra-estrutura melhor, é claro que poderíamos exportar mais. Mesmo assim ela é competitiva, considerando-se que os investimentos públicos e privados ainda são insuficientes. Ainda há, realmente, deficiências na logística e no financiamento do setor agrícola.
Não tenho a menor dúvida de que sim. A política americana atual é míope, como a européia. É só olhar os últimos atos do governo Bush, absolutamente temerosos, com a elevação dos subsídios agrícolas, o que contraria um compromisso fechado na Rodada do Uruguai, a salvaguarda do aço, em uma tentativa de dar sobrevivência a uma indústria moribunda, um protecionismo geriátrico de um setor que não tem mais horizonte de vida, mas que eles protegem para estressar os países mais competitivos na siderurgia. O desrespeito ao Protocolo de Kyoto também é absolutamente inaceitável. E depois nos acusam de desrespeitar o meio ambiente e comprometer a preservação da Amazônia. Os Estados Unidos e a Europa são de uma hipocrisia fantástica.
O Brasil adotou um modelo de atividade de comércio exterior disperso e todos os ministérios da área econômica têm uma interface com a política de comércio exterior do País. A Camex foi criada em 1995, quando o governo sentiu que faltava uma coordenação do setor. Ela procura cumprir este papel de coordenar o comércio exterior, mas ainda encontra dificuldade porque a formação de consenso nem sempre é possível. Quando ele não ocorre, há uma inércia. Precisamos melhorar a qualidade da nossa mão-de-obra, do marketing internacional, da tecnologia, realizar um trabalho muito abrangente e muito forte para colocarmos o Brasil em uma posição mais relevante no mercado mundial.
Estamos crescendo em mercados onde não existem tantas barreiras. Algumas podem até existir. Por exemplo: na China, no México, na Rússia. A Índia tem o problema de limitação da renda, mas estamos fazendo acordos para melhorar a nossa exportação. Não é um mercado tão grande quanto parece. No Oriente Médio as exportações também crescem. No Iraque não, mas na Arábia Saudita e nos Emirados, sim.