05/11/2003 - 10:00
Na visão dos ideólogos do Pentágono, o Iraque deveria servir como exemplo de democracia para todo o Oriente Médio. A seguir-se esta lógica, a situação atual no país demonstra exatamente o contrário do desejado. Por exemplo: na Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, o manual democrático a ser copiado, fica estabelecida, entre outras garantias, a liberdade
de imprensa. O mesmo artigo não parece aplicável em terras iraquianas. Os repórteres que cobrem a ocupação americana estão sendo
impedidos de documentar a dramática situação local. Já não podem
mais filmar destroços pós-atentados, ou mesmo mostrar caixões envoltos em bandeiras americanas, cujo conteúdo são os soldados a serem devolvidos a suas famílias. Não se vêem também, nas tevês americanas, os iraquianos comemorando resultados de ataques de sucesso contra as forças da coalizão. A censura virou norma. Mas numa região onde, entre os dias 23 e 30 de outubro, ocorreram 233 atentados, essa medida equivale a tentar tapar o sol com a peneira. É impossível evitar os espetáculos fúnebres do retorno de militares mortos: o número de
baixas desde 1º de maio, quando o presidente George W. Bush
declarou o fim da guerra, já somava, na quarta-feira 29, 116 mortos
no pós-conflito (os feridos são algo em torno de 1.060), superando-se assim a marca de 115 abatidos durante a invasão. A precariedade da segurança desmantela o sonho americano e ameaça a Presidência de Bush dentro de sua própria casa.
Mesmo a censura não conseguiu impedir, por exemplo, as imagens
de Paul Wolfowitz, o subsecretário da Defesa dos Estados Unidos e um dos principais ideólogos da invasão iraquiana, atarantado, cabelos em desalinho e envergando um cômico colete à prova de balas, saindo do Hotel al-Rachid em Bagdá. No domingo 26, um ousado atentado àquela hospedaria de americanos por pouco não obliterou o prédio todo e eliminou Wolfowitz. A sofisticação do ataque provocou, como ele
próprio admitiria depois, “frio na barriga” do subsecretário. Usando a carcaça de um gerador de eletricidade sobre rodas como disfarce
para uma bateria de lançadores de foguetes, a guerrilha iraquiana
só não foi mais destrutiva porque alguns petardos falharam na detonação. Mesmo assim, a ação foi suficiente para ferir 19 pessoas, matando um coronel americano. Para Wolfowitz, cuja visita pretendia ser um esforço de relações públicas para demonstrar progressos feitos na ocupação do país, foi um tiro que saiu pela culatra. E os atentados não pararam nisso. Naquele mesmo dia, o vice-prefeito de Bagdá, Faris al-Assam, foi assassinado. Vinte e quatro horas depois, em pleno Ramadã, o quartel-general da Cruz Vermelha Internacional (CVI) sofreria bombardeio em que 34 pessoas perderam a vida e outras 200 ficaram feridas. A organização, peça fundamental no cotidiano iraquiano, anunciou em seguida que estará diminuindo sua presença no local. Hoje, a CVI emprega 600 iraquianos e 30 estrangeiros, que mal conseguem dar conta do trabalho na capital. Os estrangeiros devem arrumar as malas para partir. Terão como companhia muitos profissionais de saúde da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF), que também vão bater em retirada forçada, e funcionários da ONU.
"Os atentados se multiplicam e ganham muito em sofisticação”,
confessou o general Ricardo Sánchez, comandante militar americano
no Iraque. “A logística nos ataques deu um salto de qualidade.
Antes, eram ações improvisadas e desconjuntadas; agora viraram operações militares sofisticadas e com óbvias características de
táticas militares formais”, diz o senador republicano John McCain, que, apesar de ter sido a favor da invasão, vem criticando os planos do pós-guerra. Sua voz apenas engrossa o coro americano contra a atuação do governo Bush no Iraque. Já não é segredo que os Estados Unidos enfrentam uma guerrilha organizada na região, principalmente no chamado Triângulo Sunita, que tem base em Bagdá e vértice em Tikrit, a terra ancestral de Saddam Hussein.
As tropas da revolta iraquiana contam não apenas com ex-militares e esbirros do antigo regime, como também foram engrossadas por militantes radicais islâmicos estrangeiros que entram no país através das porosas fronteiras. Somem-se a eles os membros da organização Ansar al-Islam, que mantinha bases a nordeste da nação e vínculos com a al-Qaeda. Esta gente toda opera de modo mais ou menos coordenado, mas mantendo independência em suas ações. Fontes dos serviços de inteligência americanos acreditam que no comando daqueles leais a Hussein está Izzat Ibraim al-Douri, antigo conselheiro do ditador deposto. “Mas os radicais islâmicos só obedecem aos seus próprios líderes. Eles formaram apenas uma aliança de conveniência”, diz o senador republicano Pat Roberts, presidente da Comissão de Inteligência do Senado. O pior é que a estratégia seguida pelos revoltosos é aquela ensinada por Mao Tsé-tung, mestre nas artes da guerrilha. A tática é fazer com que os guerrilheiros circulem entre a população civil, “como os peixes na água”. Ou seja: contam com o auxílio do povo, que, nos delírios do Pentágono, deveria estar agradecido pela tutela americana.
Na guerra de propaganda travada pelo governo Bush usam-se como arma os US$ 13 bilhões que foram prometidos por outras nações para o esforço da reconstrução no Iraque. O secretário de Estado, Colin Powell, fez um estardalhaço com a promessa de arrecadação, depois da reunião em Madri, com países doadores. O que não se disse é que a maior parte desta importância chegará como empréstimo e o controle da verba será feito pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Trata-se de mais uma forma de arrancar poderes das mãos de Paul Bremer, o administrador civil americano no Iraque. E o dinheiro só sai mesmo quando o país tiver governo estabelecido, e que possa ser responsabilizado pelo pagamento do empréstimo através dos mecanismos internacionais. No fundo, esta dinheirama procura garantir a transição rápida de poder em Bagdá, saindo das mãos dos EUA, para um novo regime iraquiano. É, em outras palavras, ouro de tolo.