O ministro do Planejamento, Guido Mantega, tem um compromisso importante na semana que vem. O presidente da Câmara, João Paulo Cunha (PT-SP), estará à sua espera para receber um documento de
seis folhas, cinco capítulos e uma proposta que promete abrir uma nova frente na relação entre o Estado e a comunidade empresarial. Trata-se do projeto de lei que institui as Parcerias Público-Privadas (PPPs), nascidas basicamente para combater a notória incapacidade da União
em fazer investimentos. “Com as PPPs, o governo vai reconstituir a capacidade de planejamento que havia perdido e passar a dividir os
riscos com a iniciativa privada”, diz Mantega.

O modelo é relativamente novo. Faz menos de uma década que começou a ser implantado, com muitos sucessos e alguns fracassos, em países como Inglaterra, Portugal, Espanha e África do Sul. No Brasil, é novidade absoluta que já nasce com avanços em relação a esses países, segundo um dos principais articuladores do projeto, o assessor especial do ministério Fernando Haddad. “As parcerias já acontecem, mas não do modo como estamos propondo. Vamos inaugurar um modelo misto, que une as virtudes do Estado, como sua visão de longo prazo, com a eficiência do setor privado”, afirma o ministro. Quando aprovado (Cunha já disse ao ministro que vai se esforçar para que isso aconteça ainda
em 2003), o projeto vai permitir que obras de infra-estrutura sem apelo comercial sejam construídas. A previsão é de que pelo menos R$ 36 bilhões sejam investidos por empresas privadas nos próximos quatro anos em obras como ferrovias, rodovias, portos, projetos de saneamento e habitação e tudo o mais que envolva serviços públicos.

No papel, as coisas são bem simples. O governo aponta quais obras
quer ver erguidas. As empresas fazem o investimento, sozinhas ou junto com alguma esfera estatal (União, Estados, municípios e companhias estatais são contempladas pela lei) Para tornar o projeto atraente, o Estado garante uma rentabilidade do empreendimento por um período.
Um exemplo prático: a BR-101, em seu trecho nordestino, precisa ser duplicada e reformada. O governo não tem dinheiro e a iniciativa privada não se atrai a tocar a obra, pois não há fluxo suficiente para garantir a lucratividade do empreendimento. Se a obra surgir de uma parceria
nos novos moldes, o governo garante à empresa que desembolsou milhões para fazer a estrada uma rentabilidade pré-determinada durante algum tempo. “A sociedade ganha a estrada, o governo não gasta um dinheiro que não tem e a empresa faz um investimento seguro e rentável”, diz o ministro.

“A União investe muito menos que o necessário, o que condena o
cidadão brasileiro a não ter as obras que tem direito”, diz o presidente
da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústria de Base, José Augusto Marques. “As PPPs vêm preencher uma lacuna importante
como instrumento de aplicação de recursos”, diz o executivo, um dos principais interlocutores do Ministério no processo de discussão do projeto de lei. “É uma questão de escolha: ou utilizamos as PPPs ou não teremos as obras desejadas”, afirma o engenheiro Pio Gavazzi, diretor de infra-estrutura da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Ambos fazem uma ressalva importante, nascida da eterna fama de mau pagador do Estado: é preciso garantias fortes de que os empreendedores privados vão receber o devido. Afinal, são projetos de até 30 anos de duração que não podem morrer à primeira mudança de governo (outra prática que o Brasil conhece bem). “Estamos criando fundos com ativos públicos valorizados e de liquidez para garantir os pagamentos”, diz Mantega. O futuro agradece.

 

O ovo de Mantega

O ministro Guido Mantega, embora cumprindo uma agenda de trabalho quase desumana (“o Ministério está a mil por hora”, diz, em tom eufórico), recebeu ISTOÉ em seu gabinete, no início da tarde da quarta-feira 29. Seguem os principais trechos da entrevista, na qual ele detalha o que considera um “ovo de Colombo”, o projeto de Parcerias Público-Privadas.

ISTOÉ – Qual a importância das PPPs para o projeto de desenvolvimento do governo?
Guido Mantega
– As PPPs são talvez o principal instrumento
do governo para a reativação dos investimentos na área de
infra-estrutura. Nós sabemos que o Brasil está agora no limiar de
um período de crescimento sustentado. Temos sinais disso, como a reação da indústria e a retomada da importação de bens de capital. Estamos dando os primeiros passos e, para que essa fase se consolide, é preciso ir além do aumento de demanda. É claro que
é importante que haja mais consumo de eletrodomésticos, carros e tudo o mais. Mas é necessário que o crescimento se dê através do aumento do investimento.

ISTOÉ – Por que essa necessidade? A demanda não acaba por atrair investimentos?
Mantega
– São os investimentos que tornam sustentável o processo de desenvolvimento, pois você aumenta a demanda, mas também aumenta a oferta. Assim teremos um crescimento equilibrado, sem problemas de inflação no futuro. Diferente do que aconteceu, por exemplo, durante o Plano Cruzado. Na época, o governo estimulou muito o consumo. Faltou oferta e tivemos inflação. Aí foi necessário interromper o crescimento. Nossa estratégia é equilibrada.

ISTOÉ – E por que os esforços estão centrados nos projetos de infra-estrutura?
Mantega
– Porque sem ela você não cresce, ou depara com pontos de estrangulamento. Nós estamos querendo aumentar as exportações. Para que esse processo se consolide são necessários portos, estradas. A situação é grave, durante muitos anos não se investiu o necessário. Nós acumulamos um atraso, principalmente em logística de transporte. Esse atraso tem que ser enfrentado com investimentos planejados, de longo prazo de maturação. Aí nos deparamos com um problema: o governo tem pouco dinheiro para fazer investimentos. Na história do Brasil, o Estado foi a locomotiva dos investimentos em infra-estrutura. O plano de metas de Juscelino tinha três pilares: transporte, energia e telecomunicações. Naquele tempo o Estado tinha dinheiro, não tinha se endividado ainda. O Brasil foi uma das economias que mais cresceram no século XX, em parte graças à atuação do Estado viabilizando a infra-estrutura.

ISTOÉ – Hoje o Estado não possui mais essa capacidade de
fazer investimentos…
Mantega
– Os gastos do governo estão comprometidos com
gastos sociais e com despesas obrigatórias. Previdência, Saúde e Educação absorvem quase a totalidade dos recursos. Sobra pouco para investimentos, cada vez menos. Nós descobrimos um ovo de Colombo, uma forma de viabilizar esses investimentos, captando recursos do setor privado.

ISTOÉ – O mundo já adota esse modelo?
Mantega
– As parcerias público-privadas já são realizadas em
vários países, como Inglaterra, Irlanda, Espanha e Portugal. Na verdade, o Estado brasileiro faz parcerias há muito tempo com
o setor privado. Por exemplo, quando faz a concessão de uma
estrada ou de uma ferrovia a uma companhia. A iniciativa privada assume a estrada e o Estado não interfere mais. A parceria que estamos propondo é diferente, envolve co-responsabilidade. Estado e iniciativa privada assumem o risco de uma determinada atividade, como se o Estado estivesse contratando um serviço de utilidade pública. As empresas fazem o investimento e o Estado arca apenas com a rentabilidade do investimento, em vez de fazer uma despesa que mal cabe em seu orçamento.

ISTOÉ – Quais as vantagens do modelo?
Mantega
– Vamos contemplar duas necessidades. O Estado passa
a orientar a construção da infra-estrutura e o setor privado, hoje ocioso, ganha uma chance concreta de investir. Há projetos de
infra-estrutura que não se realizam automaticamente pelas leis de mercado. O governo vai indicar e o setor privado vai lá fazer a obra. Vamos mobilizar todo um segmento que vai gerar emprego e renda. Estamos criando um pólo de desenvolvimento.

ISTOÉ – Qual o volume de investimentos esperado?
Mantega
– Em quatro anos, a iniciativa privada pode entrar com
R$ 36 bilhões. As estatais têm um potencial de investimento de
R$ 140 bilhões no mesmo período. Os fundos de pensão também vão participar, eles precisam achar alternativas de investimento. Hoje eles estão no mercado financeiro, mas querem a possibilidade de fazer investimentos sólidos, lucrativos e com liquidez.

ISTOÉ – Será mais rentável investir em infra-estrutura do que no mercado financeiro?
Mantega
– Essa é uma condição para o modelo funcionar. Ao longo do tempo, com a queda dos juros, será mais atraente participar de parcerias do que aplicar em fundos.

ISTOÉ – A garantia de rentabilidade não elimina o risco?
Mantega
– Não, pois o Estado vai fazer um contrato com remuneração decrescente, que vai forçar as empresas a ganhar produtividade. O risco será compartilhado. Senão não teria graça. O risco é um estímulo para o investidor.

ISTOÉ – As obras públicas no Brasil padecem de três problemas crônicos: os custos, os prazos e a corrupção. As PPPs se defenden deles?
Mantega
– Sim. O que acontece hoje? O setor público começa uma estrada. Meses depois a obra é paralisada. Quando ela é retomada, o custo e o prazo já foram superados. As PPPs acabam com isso, já que o setor privado terá interesse em baratear o custo da obra e torná-la rentável. E o processo de concorrência vai eliminar janelas de possibilidades de corrupção.

João Paulo Nucci