05/11/2003 - 10:00
Pesquisa recente do Instituto Toledo & Associados revela o quanto anda tensa a relação entre motoristas e motoboys em São Paulo. Para 19% dos que dirigem pela cidade, os motoqueiros representam o maior problema do trânsito paulistano. Só perdem para o quesito lentidão/congestionamento, que vem em primeiro lugar com 59%. O curioso é que quem condena é geralmente quem liga implorando para o motoqueiro “voar” para pagar aquela conta que não
pode atrasar. Essa urgência está produzindo tragédias. De acordo
com o Sindimmoto, um dos sindicatos da categoria, acontecem em
média 70 acidentes por dia na capital paulista. Destes, um foi
transmitido em cadeia nacional. Na segunda-feira 20, o motoboy Rubens, integrante da equipe de motolink da Rede Record, perdeu o controle ao ser fechado por um carro e atingiu dois pedestres. Um deles, Josué José dos Santos, morreu. Na mesma noite da fatalidade, IstoÉ havia agendado entrevista com os motoqueiros da emissora. A conversa foi cancelada. Rubens vai poder voltar a pilotar. Ao contrário de muitos colegas dessa tribo, verdadeiro fenômeno paulistano. A cada 24 horas dois motoqueiros perdem a vida no trânsito da cidade. O número não é oficial, mas é o dado mais chocante revelado pelo documentário Motoboys, vida loca, de Caíto Ortiz, destaque da 27ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que terminou na quinta-feira 30.
Levantamento feito pela equipe do Motoboys mostra que hoje há cerca de 300 mil desses profissionais circulando pela cidade. Os números oficiais estão entre 100 mil e 150 mil. Há cinco anos eram pouco mais de 40 mil. Com o aumento veio a mudança de perfil da categoria. O cachorro louco, até então o estereótipo do motoboy, aquele que aterroriza motoristas quebrando retrovisores, não é mais a maioria. Agora é comum ver chefes de família, universitários e mulheres atrás do capacete e guidão. Personagem do documentário e dona de uma história comovente, Maria Madalena Rutschka, 45 anos, é um exemplo dessa mudança. Apesar de três acidentes sofridos, uma moto roubada e de uma tentativa de roubo de outra, ela continua no asfalto. Tudo para curar uma ferida que teima em não cicatrizar. “Meu filho morreu em 1996. Não tinha mais nada a perder. Deixei meu emprego de 15 anos, um casamento e cai na rua”, conta. Paulo Ricardo morreu em 1996, aos 18 anos. Mergulhou e não voltou com vida de um rio quando passava férias em Itapetininga, interior de São Paulo. Mas Madá ainda sonha. Pretende trocar o banco da moto por um de uma agência de publicidade. “Adoro o que faço. É loucura. Mas, apesar da minha idade, ainda quero ser publicitária”, diz.
O sonho foi a ferramenta que impulsionou a vida do ex-motoboy Ednaldo José da Silva, 36 anos. Uma colisão com um Ômega em 2001 deixou seus membros inferiores paralisados. Em vez de se entregar a inércia de uma cadeira de rodas, ele deu um novo rumo à vida. “Já que não poderia mais fazer o que mais gosto quis arrumar uma atividade próxima das motos”, diz. Ednaldo é sócio de uma empresa de entregas rápidas. Passa o dia inteiro vendo Hondas CGs e Biz e Yamahas Ybrs, modelos preferidos pelos motoboys, chegando e partindo.
Acidentes como o de Ednaldo custam caro aos cofres públicos. Uma saída da viatura de resgate, o anjo da guarda dos motoboys, custa, entre manutenção, combustível, salário e formação do militar e equipamentos, R$ 33 mil. Para diminuir prejuízos e dores, algumas medidas estão sendo tomadas. Em breve, entrará em vigência decreto lei que regulamenta a profissão de motoboy. A partir da publicação da lei, os motoqueiros terão que se cadastrar na prefeitura. Além disso, todas as motos terão que ser equipadas com o baú de transporte. A medida acaba com o uso das mochilas e as consequentes dores nas costas provocadas por elas.
Para obter o cadastro, o motoqueiro terá também que apresentar atestado de bons antecedentes criminais. Quem se enquadrar nesses requisitos terá acesso às melhores ofertas de emprego e salários mais justos. “Queremos harmonizar essa relação entre motoboys e motoristas. Sabemos que ainda não é a solução ideal. Mas é um começo”, diz Josias Leche, 36 anos, diretor do Departamento de Transportes Públicos de São Paulo. A elaboração do decreto contou com a participação dos sindicatos da categoria. O presidente do Sindimmoto, Aldemir Martins de Freitas, 31 anos, o Alemão, está satisfeito com o avanço. Mas reclama do tratamento que a sociedade dispensa aos companheiros. “Como toda categoria, temos bons e maus profissionais. Queremos coibir abusos”, diz Alemão, partidário das idéias do revolucionário Ernesto Che Guevara.
Melhorar a imagem da categoria não vai ser fácil. Quem anda de carro em São Paulo e cometeu o pecado de mudar de faixa sem olhar no espelho sabe das consequências desse ato. Retrovisores, portas e capôs são as áreas mais atingidas pela ira de cachorros loucos. Até a doce Madá confessa, arrependida, que já destroçou o espelho de um motorista.
Mas arrependimento não consta no vocabulário de César Falcão Negro Augusto Cavalcante Salgado, 21 anos. Um dos personagens mais emblemáticos do Motoboys, ele assume o papel do motoqueiro tresloucado, disposto a tudo e louco pelo corredor da morte, o exíguo espaço que separa os carros e por onde trafegam as motos nos engarrafamentos. “O corredor é adrenalina pura. Quando entro ali
me transformo. Se alguém me fechar eu meto o pé no retrovisor
mesmo!”, diz. Como quase todo motoboy, Falcão Negro, o apelido vem
da cor da moto, uma Agrale preta e vermelha, mora na periferia. Nesse caso no Parque Cecap, em Guarulhos, município vizinho a São Paulo. Fã de heavy metal, Falcão perdeu a conta dos tombos que levou, teve motos roubadas e certa vez socou um motorista que ousou cruzar seu caminho. Mas não há nada nesse mundo que o faça mudar de vida.
“Nasci motoqueiro e vou ficar assim. Morreria se tivesse que ficar trancado num escritório.” Ele e seus 299,9 mil colegas. A vida é “loca”. Mas para eles tem que ser assim.
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