O enredo parece escrito pelo tcheco Franz Kafka, que no livro Metamorfose conta o pesadelo de um personagem que se transforma numa repugnante barata. Como na ficção, a novela dos transgênicos escapa a qualquer lógica ou racionalidade. Foram meses de discussão envolvendo o governo, a comunidade científica, a sociedade, o setor agrícola e industrial. Finalmente, na sexta-feira 31 de outubro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva encaminhou ao Congresso Nacional a nova Lei de Biossegurança, que estabelece regras mais rígidas para o plantio e a venda de organismos geneticamente modificados. Pela nova lei, a Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio) perde o poder decisivo sobre a liberação desses produtos, passando a ser um órgão consultivo do novo Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS), a quem caberá a palavra final. A opinião da CTNBio só será definitiva quando seu parecer for negativo. O texto da nova lei foi considerado uma vitória da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, porque assegura a necessidade de estudos prévios de impacto ambiental e lhe atribui poder de veto, caso as exigências ecológicas não sejam atendidas. Os ambientalistas e opositores dos transgênicos festejaram, mas foram os únicos.

As novas diretrizes estão longe de atender aos apelos dos cientistas e, nos bastidores, já se dá como certo que o projeto de lei sofrerá alterações drásticas para ser aprovado no Congresso Nacional. “Chegou a hora de sairmos de um círculo vicioso e entrarmos em um círculo virtuoso”, disse Marina, na quarta-feira 29, durante a cerimônia de anúncio do projeto, no Palácio do Planalto. A seu lado, visivelmente contrariado, estava o maior defensor dos transgênicos no governo, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. Na outra ponta, o titular da pasta de Ciência e Tecnologia, Roberto Amaral, e José Dirceu, da Casa Civil. “O avanço científico e a segurança humana e do meio ambiente estão garantidos”, afirmou Dirceu, que presidirá o novo conselho. Não é bem assim. Embora o projeto sinalize com medidas rigorosas, como tornar a compra, a importação, o plantio, o transporte ou a exportação não autorizados em crime passível de penas de um a três anos de cadeia, a lei não simplifica a pesquisa nacional em biotecnologia.

O melhor exemplo é o mamão resistente ao vírus da mancha anelar, ou mosaico, que macula os frutos com marcas em formato de anel. Desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em parceria com a universidade americana de Cornell, ele é reflexo da forma atabalhoada com que a questão dos transgênicos foi tratada nos últimos sete anos. Desde 1996, a divisão da Embrapa em Cruz das Almas, no Recôncavo Baiano, aguarda autorização para iniciar a fase de testes em campo da planta com proteção natural contra o pulgão transmissor da doença do mosaico.

Considerada um exemplo de que o Brasil pode competir em grau de igualdade com os maiores produtores do mundo, a experiência do
mamão resistente à praga pode terminar em um fracasso retumbante.
Os cientistas produziram as sementes em laboratório e, certos de
que o imbróglio estava perto do fim, em fevereiro deste ano iniciaram
o plantio em estufas. O certo seria transplantar para o campo as
cerca de 200 mudas quando elas atingissem um palmo de altura. Na semana passada, os mamoeiros mediam dois metros e ninguém sabia
ao certo o que poderia acontecer quando eles fossem transplantados.
“É provável que elas sofram bastante e estamos arriscados a perder
tudo o que fizemos nesses anos todos”, avisa Paulo Meissner Filho, o chefe da experiência. Guardadas desde 2000, as demais sementes do mamão geneticamente modificado podem ter perdido o poder de germinar, já que o recomendável é armazená-las por oito meses, no máximo. O pior é que o mamão não é um caso isolado.

“Hoje precisamos de sete licenças para fazer pesquisas de campo. Há três anos esperamos uma resposta sobre nosso pedido de autorização para pesquisar a batata e o feijão transgênicos”, conta Francisco Aragão, outro pesquisador da Embrapa. Na visão dos cientistas, o
novo projeto de lei cria muitas instâncias de decisão, o que poderá atrasar ainda mais as pesquisas e o licenciamento desses produtos. Peça-chave da nova lei, o CNBS será integrado pelos ministros da
Casa Civil, Secretaria de Comunicação, Ciência e Tecnologia,
Agricultura, Desenvolvimento Agrário, Meio Ambiente, Justiça,
Saúde, Segurança Alimentar, Relações Exteriores, Indústria e
Comércio Exterior e da Secretaria de Aquicultura e Pesca. Mesmo
após a decisão dos órgãos técnicos dos ministérios do Meio Ambiente,
da Agricultura e da Saúde, o presidente da República ou qualquer um de seus membros poderá exigir novos estudos. Na prática, isso representa mais obstáculos à ciência nacional.

Rotulagem – Um dos raros pontos de consenso entre cientistas, ambientalistas e governo é a necessidade de rotular os produtos que usem ingredientes transgênicos para que o consumidor possa saber o que compra. Só não se definiu quem vai pagar essa conta. “Lamento que quem vai arcar com esse custo seja o consumidor”, especula o agrônomo Rubens Onofre Nodari, gerente de recursos genéticos do Ministério do Meio Ambiente. Para as dezenas de cientistas reunidos na semana passada durante o seminário internacional sobre transgênicos, que aconteceu no campus da Universidade de São Paulo (USP), a condução do problema beira o lastimável.

“Não há casos documentados de que os alimentos geneticamente modificados tenham efeitos prejudiciais à saúde ou riscos diferentes dos alimentos convencionais”, explica Hernan Chaimovich, diretor do Instituto de Química da USP e diretor da Academia Brasileira de Ciências. O cientista chileno, há 34 anos radicado no Brasil, vai mais longe. “Não existe a menor dúvida de que a agricultura traz danos ao meio ambiente. A sociedade sabe disso há 15 mil anos, mas preferiu esse risco a passar fome”, diz Chaimovich. Porta-voz dos quase 180 ruralistas no Congresso, Luiz Carlos Heinze (PP-RS) também fala grosso. Reclama do excesso de instâncias e autoridades dando palpites, como define o projeto de lei anunciado pela junta de ministros. E promete trabalhar para que ele não seja aprovado da forma como está. Pelo visto, o pesadelo vai ser longo.