O apoio explícito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva e a falta de recursos da administração federal para o cumprimento, a curto prazo, das promessas de campanha compuseram uma equação capaz de elevar a temperatura no campo, nos últimos dez meses. O MST radicalizou sua política de ocupar fazendas e prédios públicos, as lideranças rurais não ficaram atrás e o resultado foi um aumento da violência em diversas regiões do País, inclusive com mortes no Pará. No Pontal do Paranapanema, em São Paulo, onde nos últimos 13 anos 6.066 famílias foram acomodadas em 94 assentamentos, os termômetros também subiram. Além das cerca de seis mil famílias acampadas às margens de rodovias e ferrovias à espera de mais terra e das reivindicações por recursos financeiros para a produção, há um ingrediente extracampo que tem tumultuado a região: as decisões tomadas por um jovem juiz de direito. Entre maio do ano passado e a quarta-feira 29, o juiz da Comarca de Teodoro Sampaio, Átis de Araújo Oliveira, 34 anos, assinou 11 decretos de prisão envolvendo 42 trabalhadores rurais sem-terra. Dos 11, oito foram revogados por tribunais superiores e os demais ainda tramitam no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ) ou no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. “É evidente que esse juiz está perseguindo o MST e deve ser afastado da região. Ele trata o movimento social como crime organizado”, reclama Paulo Costa Albuquerque, um dos dirigentes estaduais do MST.

O juiz Átis, que atua na Comarca de Teodoro Sampaio desde 2000, diz que concorda com as decisões dos tribunais, mas afirma que suas decisões não estão erradas, pois são absolutamente técnicas e bem fundamentadas. “O que existe é apenas divergência de interpretação”, minimiza. Ele, porém, nega qualquer perseguição aos militantes do MST. “Sou o único juiz dessa comarca, portanto, todos os processos envolvendo os sem-terra têm que ser julgados por mim”, afirma. “Tenho aqui 1.212 processos criminais e apenas 13 envolvem membros do MST, isso não é perseguição.” Os sem-terra, no entanto, não questionam o número de processos, mas sim a motivação das prisões. “As decisões do juiz não são técnicas e muito menos fundamentadas”, pondera Marcos Rogério de Souza, um dos advogados do MST na região. Para exemplificar sua queixa, Marcos cita a condenação de Roberto Rainha no processo 275/2000. Roberto é advogado recém-formado, irmão de José Rainha Júnior, principal liderança do MST na região – embora esteja afastado do comando do movimento desde o início do ano e preso desde 11 de julho. Em sua sentença, Átis registra: O réu Roberto Rainha é o irmão de José Rainha (líder máximo); sendo que de nada adianta tal acusado negar qualquer vinculação com o movimento, pois é óbvio que as tem. Vive junto com o líder máximo justamente para conseguir a colação de grau em nível superior. É claro que esse esforço tanto desse réu quanto do principal líder em lhe dar suporte material é para ter a seu lado pessoa da mais estreita confiança (irmão) e devidamente instruída.

Em entrevista a ISTOÉ na quinta-feira 30, o juiz se recusou a comentar casos específicos, mas procurou se justificar com analogias. “Aqui não há perseguição a ninguém. Prendo o líder máximo do MST, assim como qualquer outro criminoso. O problema é que se há um sujeito que todos os finais de semana furta as residências da vizinhança, ele deve ser preso preventivamente para que outras casas não sejam furtadas. O mesmo se aplica a essas pessoas do MST. Eles sempre invadem fazendas e durante as invasões furtam objetos, matam o gado e danificam a cerca. Se isso ocorre sempre, não há por que não detê-los. Em minha interpretação, isso é prejudicar a ordem pública. Pode ser que quem esteja em Brasília ou em São Paulo veja de outra forma”, disse Átis. Foi partindo desse princípio que na quarta-feira 29, exatamente um dia depois de ter mais uma decisão sua rejeitada pelo STJ, o juiz decretou a prisão preventiva de Ismael Vidal e José Lauro dos Santos, quando os dois estavam presentes a uma audiência de rotina. No processo 228/2002, eles e mais nove membros do MST são acusados de furtar madeira de cerca, em janeiro do ano passado, durante a invasão da Fazenda Guará-Mirim. O problema é que desde o início deste ano o MST não ocupou nenhuma fazenda na região e os dois que foram presos na semana passada já eram assentados e estavam trabalhando em seus lotes. “Já recorremos, mas até que saia uma decisão certamente eles perderão o que plantaram”, lamenta Paulo Albuquerque. “Há uma evidente queda-de-braço entre o juiz e os tribunais superiores, só que o trabalhador é que está pagando essa conta.”

Sofrimento – Nos tribunais superiores, tem sido aceita a tese de que o juiz ignora a Constituição ao decretar prisões sem especificar e provar quais são os efetivos autores dos crimes. “Não é legal condenar as lideranças de uma ocupação por furto, ainda que o crime tenha sido cometido. É preciso investigar e provar quem furtou”, comenta o advogado Marcos Rogério. Do contrário, seria o mesmo que condenar os principais líderes das torcidas do Flamengo e do Fluminense se, durante um Fla-Flu no Maracanã, fosse roubada uma catraca. Foi isso o que aconteceu com Diolinda Alves de Souza, mulher de Rainha. Desde 2001, ela não participa de atividades do MST, pois, após o nascimento da filha Sofia, hoje com dois anos e oito meses, optou por dedicar-se apenas à casa e aos filhos (além de Sofia, ela é mãe de João Paulo, dez anos). Em 10 de setembro último, ela foi condenada a dois anos e oito meses de prisão por formação de quadrilha no processo 275/2000.

No mesmo dia, exatamente dois meses depois da prisão de Rainha, às 13 horas, Diolinda havia terminado de almoçar com João Paulo e começava a dar a comida para Sofia quando foi presa e levada para a Cadeia Pública de Piquerobi (SP), onde permanecia até o final da semana passada. Lá, Diolinda divide uma cela de apenas nove camas com outras 14 presas. Durante a noite, fazem revezamento para dormir, visto que não há espaço sequer para colocar colchões entre as camas. Ela só vê os filhos aos sábados e passa a maior parte do tempo chorando. As crianças, por sua vez, afastadas do pai e da mãe, estão sendo cuidadas por parentes e amigos. “Está difícil, mas acho que meu pai e minha mãe logo estarão de volta. Eles não fizeram nada de errado, porque lutar para ajudar os pobres é um dever”, disse João Paulo a ISTOÉ. Na segunda-feira 27, em São Paulo, o menino pediu ao ministro Edson Vidigal, vice-presidente do STJ, que ajudasse a libertar seu pai. Na cadeia, quando soube que o filho havia ido a São Paulo, Diolinda reclamou. “Ele tinha que estar na escola”, disse ao delegado Ernani Custódio, responsável pela cadeia.

Enquanto Diolinda sofre em Piquerobi, José Rainha e Felinto Procópio dos Santos, o Mineirinho, também líder nacional do MST, carregam um outro fardo. Eles estão presos na penitenciária de Dracena, presídio onde é grande a presença do PCC. Antes, ficaram na penitenciária de segurança máxima de Presidente Venceslau, onde, segundo informações levantadas pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), seriam mortos pelo PCC, como comemoração aos dez anos de existência da organização criminosa. Por causa disso, foram transferidos para o Centro de Readaptação Penitenciária, a caixa-forte onde está confinado o traficante Fernandinho Beira-Mar. Ficaram 30 dias sem receber visitas e só em 18 de setembro foram levados para Dracena. Tudo isso em virtude de uma condenação provisória. “Acreditamos que essas coisas não ocorrem por acaso e que há um movimento visando criminalizar o MST e tirar os sem-terra do Pontal, visando à privatização das terras devolutas para a exploração de soja”, conclui Paulo Albuquerque, referindo-se a projeto já encaminhado pelo governador Geraldo Alckmin à Assembléia.