Transformado em ministro da Cultura pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o compositor e cantor baiano Gilberto Gil – um dos músicos brasileiros mais importantes dos últimos 40 anos – quebrou seu pacto de dedicação exclusiva à música, como cantou em 1975 na canção Ela, do disco Refazenda. Na maturidade dos 61 anos, ele tem agora outra musa: a política. Por ela aprendeu a acordar cedo, trabalhar até 12 horas por dia e encarar a nova função com apego religioso e fidelidade total a Lula. “Estou lá para ajudá-lo, estou disposto a ir para o sacrifício. Gosto da idéia do serviço desinteressado, que talvez venha da minha relação com o mundo religioso, com a idéia de servir ao próximo”, explica. Diante do minguado 0,4% do PIB – o menor orçamento do governo – para a execução de projetos, Gil tem feito uso da régua e do compasso para sacudir o setor da cultura. “A indústria cultural brasileira já produz mais renda e riqueza, por exemplo, do que a indústria automobilística. A economia da cultura é cada vez mais importante, não dá para relegar a segundo plano”, defende o ministro, que adotou o mote “Cultura de resultados” para a sua gestão.

O primeiro deles em seu novo palco é a própria visibilidade que Gil deu ao opaco Ministério da Cultura. De quebra, o governo ainda aproveita seu reconhecimento internacional para azeitar a política externa como linha auxiliar do chanceler Celso Amorim. Desde janeiro, o ministro da Cultura já fez mais de dez viagens ao Exterior. Há um mês, integrou a comitiva do presidente Lula para a abertura da assembléia-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Cantou, fez discurso pela paz e até conseguiu que Kofi Annan, o secretário-geral da organização, natural de Gana, tocasse atabaque com ele no show em homenagem ao representante da ONU no Iraque, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, morto em agosto passado, na explosão de um carro-bomba em Bagdá. Annan, que não fez feio na percussão com a banda de Gil no encerramento do show, mandou ao ministro-cantor um emocionado bilhete de agradecimento e, ainda sob o impacto do encontro, falou a ISTOÉ sobre as qualidades do músico. “Gil oferece ao mundo uma música que tenta dar poder às pessoas. Quando me convidou para acompanhar sua música, aceitei, mesmo sendo alguém que bate nos tambores apenas movido pela herança cultural africana”, ressaltou Kofi Annan.

Simbiose – É fora do Brasil que a simbiose entre o ministro e o músico mais se evidencia. Já esteve no Chile, na África, no Canadá, nos Estados Unidos e na França em missões oficiais. Nos últimos dois meses, o Gil cantor viajou à Espanha e Portugal para fazer show com Maria Bethânia, cumprindo antiga agenda de apresentações permitida pelo presidente Lula. Depois, o Gil ministro participou de várias reuniões internacionais. “Feijoada é cultura, acarajé é cultura, o queijo roquefort, para os franceses, é cultura. Cultura é o grande símbolo da relação dos homens com a vida”, teoriza.

Este périplo no Exterior surpreende até
sua mulher, a empresária Flora Gil, casada com ele há 23 anos. Ela ia mudar-se para Brasília com o marido ministro, deixando a filharada na casa do Rio de Janeiro. “Gil
mudou mesmo foi para o mundo. Quando
ele fica alguns dias a mais em Brasília, pego um avião e o encontro. A família só se
junta quando ele vem ao Rio. Aí é uma
festa”, conta ela. Flora diz que não se surpreende com o sucesso do marido como ministro. “Ele torceu pelo Lula desde o começo, fez campanha, mesmo nunca
tendo sido do PT. Ia fazer de tudo para
dar certo como ministro”, afirma.

Resistência – Muita gente, no entanto, dentro do Partido dos Trabalhadores, fez resistência à sua nomeação. Antônio Grassi, ator global e hoje presidente da Fundação Nacional das Artes (Funarte), militante histórico do partido, reconhece que Gil cativou os petistas. “Com seu carisma, ele está fazendo um trabalho extraordinário para a cultura brasileira, conseguindo a integração entre as propostas do PT e as suas próprias, colocando a cultura como parte de vital importância nas ações do governo”, diz. Outro antigo opositor, o cartunista e escritor Ziraldo, se surpreende com a disposição para o trabalho de Gil. “Eu pensava que ele fosse cansar cedo. Mas assumiu a função e sentiu que poderia
fazer pela cultura o que o Pelé não conseguiu fazer pelo esporte.
Dou a mão à palmatória.”

Na seara interna, Gilberto Gil também segue colhendo frutos. Há três semanas, ganhou do Palácio do Planalto a cobiçada Agência Nacional de Cinema (Ancine), transferida da Casa Civil para a pasta da Cultura. E mais: antes do final do ano, a Ancine será transformada em Agência Nacional de Cinema e Audiovisual, reivindicação de produtores, documentaristas e cineastas, que esperam transformar a produção audiovisual em grande produto gerador de emprego, renda e dólares
para o País. O diretor Roberto Farias mostra-se empolgado. “Em 53 anos como cineasta, nunca vi um discurso tão correto sobre a cultura brasileira como o de Gilberto Gil. Sem dúvida, ele é o ministro da Cultura mais lúcido que o Brasil já teve. Sua proposta de política audiovisual, englobando cinema e tevê, é uma revolução”, diz. A possibilidade de interação entre os dois veículos, como ocorre nos principais países do mundo, é saudada com entusiasmo pela classe, como comemora o cineasta Cacá Diegues. “É o marco zero para o crescimento do nosso cinema, da televisão e do audiovisual.”

Esta, na verdade, não é a primeira experiência política de Gilberto Gil, que tem uma relação histórica com a construção da democracia no Brasil (leia quadro ao lado). Em 1987, ele presidiu a Fundação Gregório de Mattos, que funcionava como Secretaria de Cultura de Salvador, embrião de projetos que culturalmente revolucionaram a cidade. Na fundação, forjaram-se as primeiras idéias sobre a recuperação do Pelourinho, terreiros de candomblé foram tombados e restaurados, incentivou-se a organização dos blocos afros, como Olodum e Malê Dabalê, e a axé music deu suas primeiras reboladas. À época, a experiência e os amigos incentivaram Gil a tentar sair candidato a prefeito de Salvador. Não teve apoio do então prefeito e amigo Mário Kertèsz, do mesmo partido, o PMDB, nem do então governador da Bahia, Waldir Pires, hoje ministro corregedor-geral da República. Depois, o cantor se elegeu vereador de Salvador para um mandato exercido sem inspiração entre 1989 e 1992, período no qual se licenciou por oito meses. “Eu não gostava daquela coisa da produção retórica o tempo todo”, justifica. No mesmo período, Gilberto Passos Gil Moreira, nascido em Ituaçu, sertão baiano, assumiu a militância ambientalista. Com um grupo de amigos, os mesmos que hoje o assessoram, criou a Fundação Onda Azul, entidade dedicada à proteção das águas brasileiras. Em seguida, filiou-se ao Partido Verde.

 

Hoje, mesmo na pasta da Cultura, Gil não se nega a tratar de qualquer tema, seja da sua área, do meio-ambiente, seja até mesmo da informática, sempre no seu estilo de longas frases recheadas de palavras reinventadas. Há duas semanas entrou na polêmica sobre os produtos transgênicos. “A opção vai ter que ser política. Mas espero, como ambientalista e cidadão, que o caminho do governo seja por uma lei cautelada. E eu não defendo uma hegemonia absoluta do software livre em relação ao software proprietário. Acho que deve haver um diálogo, há espaço para ambos.”

Revendo seu passado recente, sabe-se que a desenvoltura de ministro para ele não é novidade. Há três anos, Gil é ministro do Conselho de Obás de Xangô, uma espécie de colegiado superior dos velhos do candomblé da Bahia, onde exerce a função ao lado de figuras como Dorival Caymmi. Apesar do cargo, a religiosidade de Gil, que já foi maior, não se limita ao candomblé. Tem fé em Deus e mistura tudo o que é esotérico. Já consultou diariamente o I-Ching, pratica meditação, faz macrobiótica – mas de vez em quando come picanha –, dorme no tatame, medita e faz ginástica diariamente. Na prática, porém, Gil gosta e sabe mesmo é fazer marketing. Formado em administração de empresas, em 1964 chegou a treinar para ser executivo da Gessy Lever em São Paulo. Era vendedor e compositor ao mesmo tempo. “Sempre gostei de administrar. O Chico (Buarque) e o Caetano (Veloso) falavam que da turma eu era o único com tal vocação”, admite Gil, que também tem fama de ser um executivo exigente.

Vaidade – Quem achava que ele não se adaptaria a outro ícone
do poder – o uso de terno – teve nova surpresa, como avisa a mulher, Flora. Ele adora usar ternos. Guarda no armário 18 modelos Giorgio Armani, um do japonês Yohji Yamamoto e um do brasileiro Marcelo Sommer. Flora também conta que o marido é tão vaidoso que demora horas para se vestir, ora ajeitando o nó da gravata, ora tentando esconder a calvície com as trancinhas rastafári. Todos esses efeitos contribuem para seu sucesso. Dias atrás, um garoto vendedor de
cocada viu estacionado numa rua de Brasília o carro oficial do ministro da Cultura. Ao confirmar que era mesmo o automóvel de Gil, mandou pelo motorista uma cocada de presente. Com tanta popularidade interna e externa, por um bom tempo a musa de Gilberto Gil tem toda a chance de continuar sendo a política.

 

 

Sinais

Ao deparar com a fita de uma apresentação de Gilberto Gil, realizada no Biênio da Escola Politécnica da USP, no dia 26 de maio de 1973, o jornalista mineiro Caio Túlio Costa ficou pasmo com o que tinha em mãos. Não era apenas um show. Ele notou que o evento marcava o primeiro sinal de uma possível rearticulação do movimento estudantil, destroçado pela ditadura militar desde 1968. O mote do encontro musical era fazer um protesto pela morte do estudante de geologia Alexandre Vannucchi Leme, acontecida em 17 de março daquele mesmo ano, na sede do tenebroso DOI-Codi. Da parte de Gil, a apresentação significava uma reaproximação com a esquerda universitária, que o repelia. Os fatos acontecidos nos 70 dias que separam a morte de Leme do concerto de Gil estão descritos no livro de Caio Túlio Costa, Cale-se (A Girafa, 340 págs., R$ 43).

A versão oficial da morte do estudante falava em “fuga, seguida de atropelamento”. Por não acreditar, colegas e familiares começaram a se articular. Uma das primeiras e grandes conquistas foi conseguir que dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo então recém-nomeado, realizasse uma missa de sétimo dia na Catedral da Sé, no centro da capital paulista. Paralelamente, como alguns estudantes continuavam presos, apelou-se, então, para que Gilberto Gil se manifestasse. Este, evitando maior confronto com os militares, depois da volta de seu exílio forçado em Londres, se ofereceu para fazer um show na USP, para onde convergiram todas as tendências políticas latentes. Lá, todos cantaram a proibidíssima canção Cálice, parceria de Gil com Chico Buarque. Com esse gesto claro de desobediência civil, como analisa o autor, Gilberto Gil ajudou a engordar a forte marcha em direção à democracia brasileira da qual hoje ele é um dos artífices.

Luiz Chagas