13/02/2002 - 10:00
Não fuja da dor…
Não é uma loucura
Fugir da dor é fugir da própria cura"
Juliane Zaché e Lena Castellón
A música dos Titãs, incluída no mais recente CD do grupo, é uma das canções de um disco terminado após a morte do guitarrista Marcelo Frommer, ocorrida em junho de 2001. A gravação é uma homenagem ao companheiro. Por meio da letra de Não fuja da dor, o grupo quis mostrar que, muitas vezes, esse sofrimento é necessário. A dor é um sinal de que algo na alma ou no corpo não está bem. É preciso dar atenção a ela, buscar sua causa e encontrar a melhor maneira de combatê-la. É exatamente isso o que está começando a acontecer no Brasil. Várias iniciativas estão sendo feitas para ajudar no tratamento do problema. Uma delas é a criação da organização não-governamental Aliviador (Programa Nacional de Educação Continuada em Dor e Cuidados Paliativos para Profissionais de Saúde). O projeto foi lançado por médicos especializados e o objetivo é orientar os profissionais e a sociedade. A partir de março, a entidade promoverá uma caravana por cerca de 50 cidades do País para divulgar informações sobre a dor. A ONG ainda está orientando funcionários municipais de São Paulo para saber como agir quando os pacientes se sentem mal. A intenção é mostrar que não se pode tratar as doenças e ignorar os desconfortos do doente. “Alguns médicos priorizam a doença e se esquecem da dor, prejudicando a qualidade de vida do paciente”, alerta o clínico geral João Figueiró, coordenador do programa e integrante do Centro Multidisciplinar de Dor do Hospital das Clínicas (HC) de São Paulo.
Na esfera oficial, também há movimentação para se levar mais em consideração o sofrimento do doente. O Ministério da Saúde acabou de criar uma comissão para tratar do assunto. O grupo, integrado por médicos, pretende levar sugestões, como a inclusão do tema dor nos currículos das faculdades da área de saúde. Outra batalha será tornar rotineira a análise da sensação dolorosa na avaliação do paciente. Dessa forma, como é de costume medir a pressão arterial, o pulso, a temperatura e investigar as condições da respiração do doente, será preciso saber se ele está sentindo dor. O enfermeiro deverá perguntar ao paciente qual o grau de seu desconforto numa escala de zero a dez.
Além disso, é preciso entender que sentir dor não é normal. “Temos um arsenal de recursos para combatê-la”, afirma o neurocirurgião Manoel Jacobsen Teixeira, do ambulatório da dor do HC/SP. De fato, cerca de 95% das dores são tratáveis ou amenizadas. Cada vez mais surgem tratamentos que variam de analgésicos simples até cirurgias, além de técnicas de relaxamento, para tratar os tipos mais frequentes (dor de cabeça, nas costas, nos músculos e nas articulações).
A aposentada Noemia de Almeida, 74 anos, de São Paulo, já usufruiu desse arsenal. Há quatro anos ela sente dores na metade do rosto causada pela cefaléia em salvas, um dos piores tipos de dor de cabeça. Há dois anos, no entanto, conseguiu alívio ao fazer uso de um remédio contra cefaléia da classe dos triptanos, considerados de última geração. “Antes, ficava quase louca”, lembra. Hoje, suas dores estão mais amenas. Outra novidade contra dores graves são as drogas chamadas de neurolépticas. Elas diminuem o impulso elétrico das terminações nervosas do corpo, responsáveis pela condução da informação da dor até o cérebro. É como se prejudicassem a comunicação de que o indivíduo vai sentir dor. Deixando de ser informado corretamente, o cérebro responderá de maneira que a intensidade da dor fica mais amena.
Às vezes, remédio só não basta. É necessário aliar outros métodos. Foi o que aconteceu com o químico paulistano Marcelo Barreiros, 36 anos, portador de uma hérnia de disco. O mal é causado pelo deslocamento de um pedaço do núcleo do disco vertebral (estrutura que fica entre as vértebras da coluna). Ele teve de usar antiinflamatório e fazer fisioterapia, pois ficou dez dias de cama sem se mexer. “As dores eram insuportáveis”, recorda-se. O químico não conseguia nem mesmo dirigir. Hoje deu a volta por cima. Porém, os especialistas afirmam que a principal medida para evitar e até tratar os problemas de coluna é a reeducação postural. “Metade dos casos pode ser causado pelos maus hábitos”, garante o reumatologista Jamil Natour, de São Paulo. Por isso é preciso ensinar ao paciente a maneira certa de pegar um peso, entre outras medidas.
Outro caso que exige a associação de vários métodos para controlar a dor é o combate à fibromialgia. A doença é um dos tipos mais comuns de reumatismo, processo inflamatório das articulações, caracterizada por dores constantes e generalizadas. O tratamento é à base de analgésicos, antiinflamatórios e exercícios físicos de baixo impacto para alongar o corpo. A hidroterapia – exercícios lentos feitos numa piscina com a temperatura da água em cerca de 32 graus Célsius – é uma das melhores indicações. Foi essa modalidade que ajudou a freira Helena Rosa da Silva, 44 anos, a atenuar seu sofrimento. Ela também faz fisioterapia para fortalecer a musculatura. “Quem tem fibromialgia não pode se acomodar senão a doença domina o corpo”, ensina Helena.
Essas decisões significam um avanço. A dor tem sido negligenciada por aqui muito em razão da falta de informação sobre o assunto entre os próprios profissionais. “A maioria das universidades não tem matérias específicas a respeito da dor”, informa Figueiró. Das cerca de 100 faculdades de medicina do País, apenas quatro incluem o estudo da dor no currículo. Mas, embora relegado pelos médicos até agora, o sofrimento atinge muita gente. Crônica – com duração superior a seis meses – ou eventual, como uma enxaqueca, a dor castiga cerca de 60 milhões de brasileiros, incluindo as crianças. “É por isso que ela precisa ser vista como um problema de saúde pública”, afirma Luciano Braun, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor.
A pregação da religiosa também vale para outras dores crônicas que atingem os músculos, como a lesão por esforço repetitivo (LER), inflamação dos tendões causada por movimentos repetitivos. Geralmente esses pacientes ficam sem movimentar as partes atingidas por causa da dor. “É um equívoco. Isso só ajuda a retrair o músculo e aumenta a sensação dolorosa”, explica Lin Tchia Yeng, fisiatra do Centro da Dor do HC/SP. O hospital e instituições de Belo Horizonte e Porto Alegre oferecem atendimento multidisciplinar contra o problema. Os pacientes aprendem a fazer auto-massagem no momento das crises e têm aulas de dançaterapia. “A técnica consiste em movimentos lentos que alongam o corpo”, diz Andrade José, professor de dança. A digitadora Márcia dos Santos, 27 anos, é a prova de que dançar faz bem contra a LER. “A dança me ensinou vários exercícios para alongar meu corpo e, dessa forma, consigo me sentir melhor”, conta.
Há dores, no entanto, que exigem soluções mais potentes. O sofrimento imposto pelo câncer em estado avançado só é amenizado com morfina. Porém, muitos médicos têm receio de usar a droga. Eles temem que a substância cause dependência. “Mas a finalidade é terapêutica e problemas de dependência acontecem em 1% dos casos”, garante o médico Manoel Jacobsen. Independentemente da polêmica, os laboratórios continuam pesquisando melhores produtos. O Cristália, de São Paulo, está desenvolvendo uma morfina especial injetável de longa duração. Segundo a empresa, a vantagem do novo produto em relação aos tradicionais será a duração do efeito da droga no organismo: cerca de 72 horas. Já os demais dão alívio por cerca de seis horas, o que obriga o doente a tomar várias injeções ao dia. Quando a dor atinge graus de intensidade insuportáveis, é preciso fazer uma cirurgia para cortar os nervos responsáveis pela transmissão dos sinais da dor até o cérebro. É um procedimento radical, indicado principalmente para pacientes em estado terminal. Mas contra a dor vale usar todas as armas. Afinal, ninguém precisa sofrer.
Não são apenas os programas de assistência à dor que estão progredindo no combate ao problema. Até mesmo a fabricação de remédios contra o mal está se aperfeiçoando. Tanto é que a Farmacopéia americana – entidade controladora de matérias-primas das drogas – escolheu um fármaco brasileiro para servir de referência mundial. É a primeira vez que isso acontece. A substância é o citrato de sufentanil, princípio ativo usado na fabricação de um analgésico contra dores crônicas. O composto é produzido pelo Laboratório Cristália, de São Paulo.
O fato de o produto ser reconhecido como padrão internacional pela entidade americana significa que ele passou por exigentes testes. E a partir de agora a qualidade das drogas à base de citrato precisará ser igual à do princípio ativo do Laboratório Cristália. “É uma grande vitória”, diz Ogari de Castro Pacheco, presidente do laboratório. Jaldo de Souza Santos, presidente do Conselho Federal de Farmácia, também considera a escolha um acontecimento a ser comemorado. “É uma boa notícia para o País”, afirma.