Agora é lei. Se o suor de alambique não for brasileiro, esqueça. Cachaça, só se vestir camisa amarela e chapéu de palha. Assinado na primeira semana do ano pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, o Decreto 4.072 não poderia ser mais exato: “Cachaça é a denominação típica e exclusiva da aguardente de cana produzida no Brasil, com graduação alcóolica de 38% a 48% em volume a 20 graus Celsius e com características sensoriais peculiares.” O documento complementa a lei de classificação de bebidas e, junto com o Decreto 4.062, assinado em dezembro, impõe patente sobre a expressão “cachaça”. Se apenas o espumante francês produzido na região de Champagne merece o nome convencional, toda cachaça deve, a partir de agora, falar português e jogar futebol. Para bom bebedor, no entanto, cachaça é coisa que não se explica: bebe-se. E muito. Segundo a Associação Brasileira de Bebidas, são comercializados 1,3 bilhão de litros anuais de caninha, cerca de 12 litros para cada brasileiro com mais de 18 anos. Isso coloca a pinga atrás apenas da cerveja no pódio nacional da bebericação e em terceiro lugar na hierarquia mundial de destilados, atrás da vodca e do soju coreano.

Agora, imagine uma garrafa de 51 classificada como rum nos bares de Nova York. A matéria-prima das duas bebidas é a mesma, mas oferecer a birita dos piratas como aperitivo para a feijoada é uma heresia. “É o mesmo que chamar samba de rumba”, compara a presidente do Programa Brasileiro de Desenvolvimento da Aguardente de Cana (PBDAC), Maria das Vitórias Cavalcanti. Desde novembro do ano passado, no entanto, o Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms exige a palavra “rum” nos rótulos de toda cachaça que chega aos Estados Unidos. Com os recentes decretos presidenciais, o quadro pode ser finalmente revertido, com o precioso aval da Organização Mundial da Propriedade Industrial, com sede na Suíça. “A pinga é feita a partir do caldo da cana, enquanto o rum utiliza o melaço. Existem diferenças culturais, químicas e sensoriais entre as bebidas”, argumenta a presidente do PBDAC. Além disso, a idade conta em favor da cachaça.
O destilado de cana produzido no Brasil desde 1570 chegou às Antilhas apenas em 1654, na bagagem dos holandeses expulsos do Nordeste. “Quando os americanos souberem que a produção mundial de cachaça é sete vezes maior do que a de rum, terão de reconhecer a categoria”, garante Maria das Vitórias.

Se existem diferenças entre rum e cachaça, não são poucas as características que fazem de cada aguardente uma bebida ímpar. Fundado em 1993 no Instituto de Química da Universidade de São Paulo, em São Carlos, o Laboratório para Desenvolvimento da Química da Aguardente já analisou uma centena de marcas e descobriu mais de 80 compostos químicos. “Todos interferem no sabor e estão presentes em maior ou menor quantidade, dependendo da pinga”, explica o coordenador Douglas Franco. Alguns resultados surpreendem. “A cachaça apresenta metade dos aldeídos (substância responsável pela dor de cabeça na ressaca) encontrados no uísque”, conta o pesquisador. “Mas também apresenta carbamato de etila, um composto cancerígeno, como toda bebida. Queremos definir um limite que não coloque em risco a saúde do consumidor”, explica Franco. Enquanto a cachaça goza momentos inéditos em seu trono de princesa, o laboratório de São Carlos comemora a possibilidade de, finalmente, estabelecer uma tipificação da aguardente e criar uma denominação de origem controlada. “Enquanto os vinhos se dividem em Bordeaux, Douro e Valpolicella, de acordo com sua procedência, teremos, por exemplo, as aguardentes das Terras Altas, em São Paulo, e as de Salinas, em Minas Gerais”, promete Douglas Franco. “Também é preciso proibir a adição de açúcar e caramelo. Qualquer empresa faz uma cachaça de baixa qualidade e corrige a cor e o sabor artificialmente”, completa João Bosco Faria, professor da Universidade Estadual de São Paulo e parceiro de Franco no laboratório.

Yes, nós temos Havana

Presença garantida nas cerimônias oficiais do Palácio do Planalto, a cachaça mais famosa do Brasil perdeu o nome de batismo. A Havana, símbolo pátrio mais valioso do que a bandeira nacional para muitos beberrões, responde desde o ano passado pelo nome do produtor. Processado pela fabricante do rum cubano Havana Club, detentora desde 1994 da marca no Instituto Nacional de Propriedade Industrial, Anísio Santiago trocou o rótulo, mas não se fez de rogado. Aos 90 anos, ainda espera reverter a liminar. A seu favor conta a importância cultural do elixir, engarrafado em Salinas desde a década de 50. Enquanto as empresas disputam o nome, os comerciantes estão mais preocupados com a clientela. “Mantivemos o nome Havana no cardápio. Ninguém conhece o nome novo”, justifica Fernando Carneiro, proprietário do restaurante Consulado Mineiro, em São Paulo. E, se a cachaça já era famosa pelo alto preço muito antes de trocar de nome, uma garrafa com o rótulo antigo virou objeto de colecionador. O Emporio di Salerno, em São Paulo, vende a Anísio Santiago por R$ 210 e a Havana por nada menos de R$ 260.