05/11/2003 - 10:00
Malte de cevada, lúpulo e água. Seis mil anos atrás, ao sul da Mesopotâmia, esses três ingredientes já acompanhavam as refeições dos sumérios. O primeiro porre de cerveja deve ter quase a mesma idade. Se crianças e adolescentes podiam beber ou se a iguaria despertava especulações sobre os benefícios e os males à saúde, não se sabe. De lá para cá, o hábito de se degustar uma loira gelada – ou uma morena à temperatura ambiente, conforme a tradição – correu o mundo. Hoje, somente a indústria brasileira coloca no mercado 8,5 bilhões de litros de cerveja por ano, o que faz do Brasil o quarto país no ranking mundial de produção, atrás apenas de China, Estados Unidos e Alemanha. A cifra é louvável. Vale lembrar que a
história da cerveja é recente por aqui, com menos de dois séculos: os primeiros barris foram trazidos da Europa pela família real portuguesa em 1808. Apenas em 1953, há exatamente 150 anos, foi inaugurada a primeira cervejaria nacional com produção em escala, a Bohemia.
Fundada em Petrópolis pelo alemão Henrique Kremer, a Bohemia caiu
nas graças da corte. Em 1876, foi nomeada Imperial Fábrica de Cerveja Nacional por dom Pedro II e declarada bebida oficial do palácio. Até
hoje, é uma das marcas mais apreciadas no País. Esta semana, para comemorar o aniversário, a marca lança a inédita Bohemia Weiss. A cerveja é feita com trigo e vem em uma garrafa especial, com um
prático mecanismo de vedação no lugar da tradicional tampinha. O lançamento coincide com a chegada ao mercado de diversas pequenas marcas, quase sempre preocupadas em oferecer produtos diferenciados
a quem busca alternativas às tradicionais cervejas tipo pilsen
(loiras claras), hegemônicas no País. Outra novidade foi a inauguração, duas semanas atrás, da Companhia Cervejaria Imperial, um bar em Moema, bairro de São Paulo, inspirado na antiga fábrica. “Trouxe de Petrópolis diversos móveis, ferramentas, geladeiras e prêmios recebidos pela Bohemia há mais de um século. O bar virou uma espécie de museu da cerveja”, resume o proprietário Jorge Ferreira, dono de outros sete estabelecimentos em Brasília.
Boa forma – Apesar do peso da tradição, a alquimia de malte, cevada e água ainda desfruta de excelente
forma. Até a comunidade médica
acaba de se render aos aspectos saudáveis do produto, como já
acontece em relação ao vinho. Há duas semanas, pesquisadores de diversos países reuniram-se em Bruxelas, na Bélgica, e aproveitaram o Terceiro Simpósio de Cerveja e Saúde para apresentar os efeitos da loira na prevenção de doenças como arteriosclerose, diabete e osteoporose. Apenas em um ponto não houve discordância: bebida alcoólica, só para maiores. O protesto é mais do que bem-vindo. Em todo o mundo, o primeiro gole acontece cada vez mais cedo e o controle sobre a venda a menores de idade torna-se mais raro. No Brasil, esse cenário inspirou a formação de uma brigada nacional de combate ao consumo precoce, reconhecido pela Organização Mundial de Saúde como um dos grandes vilões da humanidade.
Em Brasília, um grupo interministerial criado em junho por Humberto
Costa, chefe da pasta da Saúde, estuda proibir a veiculação de peças publicitárias de cerveja entre 6h e 22h ou, pelo menos, limitar o
horário a chamadas de patrocínio. O horário é vetado a comerciais
de bebidas como vodca e uísque. Enquanto isso, o Conselho de
Auto-Regulamentação Publicitária (Conar) tenta evitar o impedimento propondo um pacote de normas éticas a ser seguido pelas agências. Reunidas em um documento divulgado em setembro, as regras prometem desvincular as campanhas do público jovem. “A decisão do Conar é uma alternativa à proposta ministerial. Existe a crença de que a propaganda é responsável pelo consumo de adolescentes”, diz o presidente Gilberto Leifert. “O certo seria que o Estado fizesse cumprir a lei. Os jovens também adoram propaganda de automóvel, mas não compram carro por causa disso”, compara. Na opinião do psiquiatra Arthur Guerra, coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas, do Hospital das Clínicas de São Paulo, a publicidade é, sim, um fator de influência. “Adolescentes sonham com a maturidade e a divulgação de produtos associados com a vida adulta é um estímulo para eles. Como se o consumo os transformasse em gente grande”, analisa o especialista.
Até 1º de janeiro, as belas modelos de 20 anos serão banidas das propagandas de cerveja. ETs e tartarugas também estão de mudança. Outra vítima da resolução do Conar é o bem-sucedido “Experimenta!”. Desde que a campanha da Nova Schin entrou no ar, a cervejaria de Itu viu sua participação no mercado ultrapassar marcas como Antarctica e Kaiser. O gerente de marketing da empresa, Luiz Cláudio Taya de Araújo, comemora. “A turma do Casseta & Planeta fez menção a nosso slogan três vezes. Está na hora de pensarmos em um novo mote, mas foi uma grande satisfação ver a empatia do público”, diz ele. Para Arthur Guerra, bombardear os telespectadores com 36 repetições do incisivo slogan e, no final, inserir uma tarja com os dizeres “Mas se você tem menos de 18 anos, nada de experimentar” é praticamente convidar o adolescente a beber. “Essa é a idade da transgressão. Dizer não é fazê-los pensar: ‘Hum, será que não mesmo?’”, alerta.
Influência – Os amigos Frederico Guerini, Maira Villas-Bôas e Lívia Nascimento, 18 anos, e Pedro Maciel, 19, admitem a criatividade do slogan, mas garantem que ninguém começa a beber por causa de um anúncio. Para Pedro, a propaganda de cerveja só desperta vontade de beber em quem já consome. “Quem influencia o adolescente a dar o primeiro gole são os amigos e a família. Tomar um ou dois copos durante um churrasco, geralmente com o consentimento dos pais, é supernormal”, diz. Frederico concorda. “A maioria dos pais deixa os filhos de 15 ou 16 anos tomar uma latinha de vez em quando”, diz. Seus comentários encontram respaldo em pesquisa realizada este ano pelo instituto Roper ASW, nos Estados Unidos, com 544 crianças e adolescentes de oito a 17 anos. Desses, 73% apontaram os pais
como as maiores influências, seguida dos melhores amigos e dos professores. Amigas de Pedro e Frederico, Maira e Lívia chamam a atenção para o caráter agremiador da cerveja. “A gente sempre combina de se encontrar em algum bar para conversar depois da aula ou para esperar a hora da balada”, conta Maira. “Por ser mais barata e menos alcoólica, a gente pode ficar mais tempo bebendo do que se pedíssemos outra bebida”, emenda Lívia.
A maioria dos jovens começa a tomar cerveja muito tempo antes de alcançar a maioridade. O hábito confirma a ausência de fiscalização nos pontos-de-venda. Esse cenário incentivou a AmBev (Companhia de Bebidas das Américas) a criar uma campanha específica para educar os proprietários de bares, restaurantes, lojas e supermercados a cumprir a lei de 1941 que proíbe a venda a menores de idade. Um adesivo foi criado com os dizeres “Pedimos RG” e ações têm sido realizadas para convencer os comerciantes a seguir a lei. “Não é justo colocar a culpa na propaganda. Vamos fazer nossa parte, mas esperamos que as instituições responsáveis façam a delas”, resume Milton Seligman, diretor de relações corporativas da AmBev e presidente do Sindicerv (Sindicato dos Produtores de Cerveja). Para o próximo ano, a AmBev prepara uma campanha que eduque os pais a evitar o consumo precoce dos filhos inspirada em iniciativas existentes em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Anheuser-Busch, fabricante da Budweiser, lançou uma cartilha de apoio à família com sugestões de como abordar o assunto.
Na casa da professora Maria Rachel Fernandes de Sá, 39 anos, tudo parecia sob controle. Ela e o ex-marido nunca deixaram os filhos sequer molhar o dedinho em seus copos. Até que, no início de outubro, Rachel encontrou o filho de 12 anos embriagado na festa de aniversário de uma amiga da escola. “Fui buscá-lo e, na hora de pagar a conta, me deparei com duas garrafas de cerveja, duas ices, uma dose de vodca e um refrigerante. Achei que o mundo ia abrir sob meus pés. Meu filho admitiu que estavam todos consumindo bebida alcoólica no mezanino da pizzaria”, lembra ela. Rachel fez uma visita ao local e viu algumas crianças passando mal no banheiro. O proprietário disse que era impossível aquilo ter acontecido. A mãe da aniversariante também ficou surpresa. Rachel só não chamou a polícia porque a filha de sete anos, que a acompanhava, estava assustada. “Meu filho vomitou ao chegar em casa. Contou que as garçonetes não faziam distinção entre criança e adulto e que um dos seguranças da pizzaria pediu a ele para não dar bandeira”, diz a mãe. No dia seguinte, os amigos revelaram que tudo continuou igual após a saída de Rachel. Normalmente, adolescentes dessa idade começam a beber em casa, durante a tarde. Aproveitam a ausência dos pais para assaltar a geladeira.
Sexualidade – Experiências desagradáveis como a de Rachel só podem ser evitadas com efetivo cumprimento da lei e medidas educativas. Os reais efeitos das mudanças nas campanhas publicitárias só serão verificados com o tempo. Mas, certamente, a influência dos amigos foi mais importante para convencer o filho de Rachel a tomar seu primeiro porre do que a sexualidade das modelos que atuam nas propagandas de cerveja. Aliás, se as novas normas de regulamentação publicitária já estivessem em vigor no ano passado, Pietra Ferrari, 25 anos, não teria ficado nacionalmente famosa por sugerir um strip-tease diante de Eduardo Moscóvis, Fábio Assunção, Murilo Benício e Marcos Palmeira nos comerciais da Kaiser. Hoje, ela é garota-propaganda da Bavária no Canadá. “Uma moça de biquíni não faz nenhum adolescente beber cerveja. No Canadá, atores com menos de 25 anos podem aparecer nos comerciais. A diferença é que, lá, menores não conseguem comprar”, diz.
Goles de saúde |
Um abismo silencioso parece dividir comunidade médica quando o assunto é álcool. De um lado, a maioria dos médicos do planeta se desdobra para combater o alcoolismo, mal que, segundo o Conselho Internacional de Álcool e Adição, afeta mundialmente 140 milhões de pessoas. De outro, um grupo mais modesto, cada vez mais se interessa em estudar os benefícios do consumo moderado de Cruzamentos de estudos epidemiográficos anteriores foram O estudo apresentado pelo endocrinologista Ivo de Leeuw, chefe do departamento de diabetologia da Universidade da Antuérpia, na Bélgica, traz boas novas para os portadores de diabete tipo 2. Além de a incidência da doença ser 36% menor em pessoas que fazem uso moderado da cerveja, a bebida não precisa mais estar na lista dos alimentos proibidos. “A combinação do lúpulo com o álcool, ainda não se sabe ao certo por que, ajuda a regularizar a produção de insulina no organismo, e com isso mantém as taxas de glicose mais sob controle”, disse. Outra grande novidade do 3rd Beer and Health Simposyum foi o trabalho apresentado pelo ortopedista inglês Jonathan Powell, do King’s College. “Pessoas com histórico familiar de perda de massa óssea, a chamada osteoporose, devem pensar em substituir todas as bebidas alcoólicas por cerveja”, disse o especialista. Isso porque o etanol, presente no álcool, afeta a saúde dos ossos. A cerveja, por sua vez, além de ter as menores porcentagens etílicas, possui silício em sua fórmula. A substância, um mineral presente no solo, está tanto na água quanto no malte que vão dar origem à loira, e é tão importante para a saúde óssea quanto o zinco e o cálcio. |
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