No meio do tiroteio entre o Judiciário e o Executivo há um advogado. O fogo pesado congelou a relação entre os chefes dos dois poderes: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Maurício Corrêa. À frente da Secretaria da Reforma do Judiciário, criada em maio pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, está o advogado Sérgio Renault, 44 anos. Ele foi o último alvo da língua ferina de Corrêa, que, na quinta-feira 16, qualificou a criação de sua secretaria como “despautério” e “excrescência”. Nesse mesmo dia, o britânico Financial Times, um dos jornais mais influentes do mundo, trazia reportagem sobre o apoio de Lula à inspeção do Judiciário pela ONU
e a reação irada dos magistrados. “Este clima certamente não
ajuda”, afirmou Renault ao FT.

Mineiramente, este advogado nascido em Belo Horizonte evita rebater os ataques com a mesma intempestividade de Corrêa. Mas critica os cardeais de toga, que agem rapidamente para defender seus interesses, mas não fazem o mesmo para melhorar o funcionamento da Justiça. Renault – que foi consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o projeto de Modernização do Judiciário no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso – habilmente vem dialogando com o andar de baixo da Justiça: “A resistência é da cúpula, não dos juízes em geral.” A secretaria faz um diagnóstico. No início do ano, vai revelar as doenças, mas também os remédios aplicados com sucesso por vários juízes, preocupados com o cidadão que sofre as dores da morosidade e da inacessibilidade de uma justiça jurássica. As boas receitas de modernização vão ser divulgadas e até premiadas. As propostas de mudanças constitucionais que tramitam há 12 anos no Congresso, como o controle externo da magistratura, estão sendo acompanhadas e apoiadas por Renault. Ele acredita que uma fatia da reforma do Judiciário será aprovada até meados do ano que vem. Seria o pontapé inicial do jogo que pretende chegar a um resultado justo no País das injustiças.

ISTOÉ – O Brasil assiste a uma inegável crise na relação entre os poderes Executivo e Judiciário. Como se chegou a isso?
Sérgio Renault

Há resistência por parte das cúpulas dos tribunais superiores às mudanças, a qualquer proposta de fora. Se compete ao Judiciário fazer proposta de reforma desse poder, então que venha essa proposta para a gente discutir. Não vejo ninguém dizer que o Judiciário funcione muito bem.

ISTOÉ – Nem mesmo setores do Judiciário apresentam propostas?
Sérgio Renault

Estou me referindo ao Judiciário como poder. As entidades de classe dos magistrados têm propostas. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) apresentou idéias boas. Enquanto organismo de classe, os juízes têm atuação muito forte, eles se movimentam rapidamente, como aconteceu na Reforma da Previdência.

ISTOÉ – O presidente do STF, Maurício Corrêa, disse que a Secretaria da Reforma do Judiciário é uma excrescência, um despautério e que o Executivo deveria fazer suas propostas através do Congresso, e não pela secretaria.
Sérgio Renault

Ninguém está dizendo que a secretaria vai impor a reforma. O que for necessário fazer através de projeto de lei nós vamos enviar ao Congresso. O que for possível fazer sem alteração de lei nós vamos propor aos tribunais, ao Ministério Público. Temos tido ótimo diálogo com a AMB, com a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e com a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamater).

ISTOÉ – Mas a Secretaria não seria uma espécie de interferência do Executivo no Judiciário?
Sérgio Renault

Mesmo que tivéssemos vontade, não teríamos como fazer
isso. A interferência no Judiciário não vai ocorrer. Não faremos reforma nenhuma sem a participação dos juízes. A secretaria foi criada para
três coisas básicas: a primeira é fazer um diagnóstico do Poder Judiciário, verificar as suas mazelas e as iniciativas que estão dando certo em
todo o País. O segundo objetivo é elaborar projetos para modernizar
a gestão. E o terceiro é acompanhar as alterações legislativas em relação ao Poder Judiciário.
 

ISTOÉ – É possível dizer onde a Justiça funciona melhor e onde funciona pior?
Sérgio Renault

Existem casos interessantes, como os juizados especiais federais. É onde há o maior nível de informatização. Os resultados
são impressionantes, tanto é que houve aumento na demanda desses juizados. Vamos adaptar essa experiência para outros. Vamos criar incentivos e ajudar os juízes a melhorar a estrutura do Judiciário.

ISTOÉ – Como?
Sérgio Renault

Por exemplo, vamos lançar em novembro prêmios às
melhores iniciativas de modernização. A idéia é reunir as melhores práticas na Justiça. A premiação será de R$ 50 mil para quatro categorias: juiz, tribunal, grupo de magistrados e juizado especial.
Para esse projeto contamos com a participação da AMB, da Companhia Vale do Rio Doce e da Fundação Getúlio Vargas. Vamos captar no
próprio Judiciário as melhores idéias.
 

ISTOÉ – Não é uma interferência da iniciativa privada na gestão da Justiça?
Sérgio Renault

 Isso é uma incompreensão da proposta. O dinheiro não vai para o Poder Judiciário nem para o Ministério da Justiça, é apenas para viabilizar o projeto. O prêmio é um meio. O objetivo é constituir um banco de dados que possa ser acessado gratuitamente por juízes e tribunais que queiram implementar projetos de modernização. Não se vai tirar recurso de uma empresa X e jogar para um tribunal Y.

ISTOÉ – A modernização passa pela autonomia financeira?
Sérgio Renault

Só no Rio, graças a um projeto do ex-governador
Anthony Garotinho (PMDB) a Justiça tem autonomia financeira.
O resultado é interessante. Lá, o Judiciário chega a emprestar
dinheiro para o Executivo.

ISTOÉ – A relatora da ONU para Execuções Sumárias, Asma Jahangir, veio ao Brasil, entrevistou várias pessoas e algumas foram mortas logo depois. A partir daí, sugeriu-se a vinda de um observador internacional. O Judiciário ficou indignado com a proposta, mas não registrou indignação com o assassinato das testemunhas. Como o sr. avalia isso?
Sérgio Renault

Achei lamentável. O fato relevante, que é a denúncia feita
e as mortes que ocorreram a partir daí, não foi destacado.

ISTOÉ – E sobre a idéia de a ONU vir ao Brasil inspecionar o Judiciário?
Sérgio Renault

A ONU é um organismo internacional muito respeitado. O que talvez tenha sido errado foi a palavra inspeção, que dá a idéia de interferência. Trata-se de uma observação. Não vejo nessa postura nenhuma interferência. Isso é comum.
 

ISTOÉ – Há, efetivamente, uma caixa-preta no Judiciário, como disse o presidente Lula?
Sérgio Renault

Defendo a tese de que o Judiciário precisa ser mais transparente. Por isso, a reforma constitucional é importante, para democratizar, dar mais transparência e racionalidade à estrutura
do Judiciário. Essas reformas, no entanto, não trarão resultados imediatos para a população. A modernização – que não necessita necessariamente de aprovação no Congresso – e as mudanças constitucionais devem ser feitas em conjunto.
 

ISTOÉ – O que falta para o Congresso aprovar a reforma?
Sérgio Renault

A reforma constitucional do Judiciário vem tramitando
há 12 anos no Congresso. No momento, ela está no Senado e
já identificamos os cinco pontos mais importantes para que seja viabilizada uma aprovação parcial, ou fatiada, da reforma. Sem
esses pontos não haverá reforma.
 

ISTOÉ – Quais são esses pontos?
Sérgio Renault

O primeiro é o controle externo da magistratura. A reforma do Judiciário não passou até hoje em grande parte por causa dessa proposta de controle externo, que também inclui o Ministério Público. Essa questão foi levantada desde 1988, na Constituinte.

ISTOÉ – Por que o controle externo coloca o Judiciário com as unhas para fora?
Sérgio Renault

Há uma incompreensão sobre o papel desse órgão de
controle externo. Seu objetivo é dar mais transparência para o
Judiciário, que exerce um serviço público essencial e por isso precisa
ser submetido, como os demais poderes da República, a algum tipo de controle. O problema é que o argumento de parte da magistratura
é de que estamos pretendendo ter uma interferência nas decisões judiciais, o que não é verdade.

ISTOÉ – O Judiciário não quer mudar?
Sérgio Renault

O Judiciário é um poder conservador e é bom que seja,
pois numa certa medida ele precisa dar estabilidade às instituições.
Mas uma coisa é ser conservador, outra é ser refratário a estar submetido a um controle da sociedade.
 

ISTOÉ – Na prática, como funcionaria o controle externo?
Sérgio Renault

As denúncias de irregularidades nas atividades dos juízes hoje são apuradas pelas corregedorias internas, compostas
por magistrados. Controle interno não é controle. Ninguém, na verdade,
sabe exatamente como funciona o Judiciário, como são destinados
seus recursos. Defendemos um organismo que controle os desvios funcionais dos juízes, podendo determinar inclusive a perda de cargo,
e isso os magistrados não aceitam.
 

ISTOÉ – Como seria formado esse organismo?
Sérgio Renault

Defendemos que ele seja constituído por 15 pessoas:
nove magistrados, dois membros do Ministério Público, dois advogados indicados pela OAB e dois cidadãos, um indicado pela Câmara e outro pelo Senado. A polêmica está justamente na participação
desses dois cidadãos.
 

ISTOÉ – Quais são os outros pontos que o governo considera imprescindíveis para aprovar a reforma que tramita no Congresso? .
Sérgio Renault

Além do controle externo, há mais quatro. Um é a federalização dos crimes contra os direitos humanos. Queremos que estes crimes sejam julgados pela Justiça Federal e não submetidos às justiças estaduais, muitas vezes expostas a pressões regionais. O terceiro ponto é a autonomia para as defensorias públicas, criadas na Constituinte para defender pessoas de baixa renda. O quarto ponto é a unificação dos critérios para realização de concursos de juízes e promotores. Hoje os concursos são feitos regionalmente e há muita denúncia de irregularidade, de favorecimento. Por fim, queremos a quarentena de entrada e saída para juízes. Assim o juiz seria impedido de advogar no tribunal no qual ele exerceu ou irá exercer a sua atividade

ISTOÉ – Qual é a chance de se aprovar isso agora?
Sérgio Renault

Até o meio do ano que vem deve estar aprovado. Mas é importante ressaltar que isso não trará celeridade à Justiça, não resolverá o problema do congestionamento nos tribunais.

ISTOÉ – O que ficaria faltando?
Sérgio Renault

Vamos enviar para o Congresso um monte de projetos para uma reforma mais global e mais profunda. Há uma série de
questões relativas à atividade dos juízes que são importantes
para agilizar o funcionamento da Justiça. São temas como férias
dos juízes, nepotismo, etc.
 

ISTOÉ – A ineficiência do Judiciário beneficia alguém?
Sérgio Renault

O mau funcionamento da Justiça favorece grupos econômicos, o mau pagador e o governo que empurra muitas coisas com a barriga. Essa é a razão pela qual a reforma do Judiciário nunca avançou.

ISTOÉ – O Estado não é o principal causador do atolamento do Judiciário?
Sérgio Renault

Oitenta por cento dos processos que estão nos tribunais superiores envolvem interesses da União, Estados e municípios. Não dá para resolver a questão do congestionamento do Judiciário sem pensar nisso, senão você vai discutir sempre 20% do problema. Por isso criamos há 40 dias um grupo de trabalho, que junta todos os ministérios, para definir um novo padrão de conduta da União em relação ao Judiciário. O objetivo é fazer com que a União deixe de recorrer ou deixe de propor ações sobre matérias a respeito das quais já existe jurisprudência classificada. Apesar de polêmico, entendemos que isso é factível porque a Advocacia Geral da União tem poderes para expedir uma súmula administrativa. Isso independe de lei.
 

ISTOÉ – Isso não seria tolher o Estado de mecanismos de defesa?
Sérgio Renault

É polêmico, mas, sabendo-se qual será o resultado, por
que iremos propor a ação? Não é que o Estado vá deixar de recorrer. Estamos fazendo um levantamento de todas as ações e queremos identificar quais são as situações para expedir normas relativas a
cada uma delas. O trabalho desse grupo de trabalho interministerial
será concluído em 20 dias.
 

ISTOÉ – Uma proposta que procura amenizar o congestionamento de processos no Judiciário e que tem causado polêmica é a súmula vinculante. Qual é a sua opinião?
Sérgio Renault

Somos contra porque inibe a liberdade do juiz de primeira instância. A renovação do Direito se dá em grande parte pela atividade de juízes de primeiro grau.
 

ISTOÉ – O presidente Lula defende dez anos de mandato para ministros do STF. Isso é viável?
Sérgio Renault

Tem que se pensar num instrumento de democratização interna dos tribunais, porque a estrutura é muito verticalizada. A idéia de mandato é interessante porque não cristaliza posições durante muito tempo. Mas existem outras coisas mais importantes para se pensar.