29/10/2003 - 10:00
No meio do tiroteio entre o Judiciário e o Executivo há um advogado. O fogo pesado congelou a relação entre os chefes dos dois poderes: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Maurício Corrêa. À frente da Secretaria da Reforma do Judiciário, criada em maio pelo ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, está o advogado Sérgio Renault, 44 anos. Ele foi o último alvo da língua ferina de Corrêa, que, na quinta-feira 16, qualificou a criação de sua secretaria como “despautério” e “excrescência”. Nesse mesmo dia, o britânico Financial Times, um dos jornais mais influentes do mundo, trazia reportagem sobre o apoio de Lula à inspeção do Judiciário pela ONU
e a reação irada dos magistrados. “Este clima certamente não
ajuda”, afirmou Renault ao FT.
Mineiramente, este advogado nascido em Belo Horizonte evita rebater os ataques com a mesma intempestividade de Corrêa. Mas critica os cardeais de toga, que agem rapidamente para defender seus interesses, mas não fazem o mesmo para melhorar o funcionamento da Justiça. Renault – que foi consultor do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para o projeto de Modernização do Judiciário no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso – habilmente vem dialogando com o andar de baixo da Justiça: “A resistência é da cúpula, não dos juízes em geral.” A secretaria faz um diagnóstico. No início do ano, vai revelar as doenças, mas também os remédios aplicados com sucesso por vários juízes, preocupados com o cidadão que sofre as dores da morosidade e da inacessibilidade de uma justiça jurássica. As boas receitas de modernização vão ser divulgadas e até premiadas. As propostas de mudanças constitucionais que tramitam há 12 anos no Congresso, como o controle externo da magistratura, estão sendo acompanhadas e apoiadas por Renault. Ele acredita que uma fatia da reforma do Judiciário será aprovada até meados do ano que vem. Seria o pontapé inicial do jogo que pretende chegar a um resultado justo no País das injustiças.
Há resistência por parte das cúpulas dos tribunais superiores às mudanças, a qualquer proposta de fora. Se compete ao Judiciário fazer proposta de reforma desse poder, então que venha essa proposta para a gente discutir. Não vejo ninguém dizer que o Judiciário funcione muito bem.
Estou me referindo ao Judiciário como poder. As entidades de classe dos magistrados têm propostas. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) apresentou idéias boas. Enquanto organismo de classe, os juízes têm atuação muito forte, eles se movimentam rapidamente, como aconteceu na Reforma da Previdência.
Ninguém está dizendo que a secretaria vai impor a reforma. O que for necessário fazer através de projeto de lei nós vamos enviar ao Congresso. O que for possível fazer sem alteração de lei nós vamos propor aos tribunais, ao Ministério Público. Temos tido ótimo diálogo com a AMB, com a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e com a Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamater).
Mesmo que tivéssemos vontade, não teríamos como fazer
isso. A interferência no Judiciário não vai ocorrer. Não faremos reforma nenhuma sem a participação dos juízes. A secretaria foi criada para
três coisas básicas: a primeira é fazer um diagnóstico do Poder Judiciário, verificar as suas mazelas e as iniciativas que estão dando certo em
todo o País. O segundo objetivo é elaborar projetos para modernizar
a gestão. E o terceiro é acompanhar as alterações legislativas em relação ao Poder Judiciário.
Existem casos interessantes, como os juizados especiais federais. É onde há o maior nível de informatização. Os resultados
são impressionantes, tanto é que houve aumento na demanda desses juizados. Vamos adaptar essa experiência para outros. Vamos criar incentivos e ajudar os juízes a melhorar a estrutura do Judiciário.
Por exemplo, vamos lançar em novembro prêmios às
melhores iniciativas de modernização. A idéia é reunir as melhores práticas na Justiça. A premiação será de R$ 50 mil para quatro categorias: juiz, tribunal, grupo de magistrados e juizado especial.
Para esse projeto contamos com a participação da AMB, da Companhia Vale do Rio Doce e da Fundação Getúlio Vargas. Vamos captar no
próprio Judiciário as melhores idéias.
Isso é uma incompreensão da proposta. O dinheiro não vai para o Poder Judiciário nem para o Ministério da Justiça, é apenas para viabilizar o projeto. O prêmio é um meio. O objetivo é constituir um banco de dados que possa ser acessado gratuitamente por juízes e tribunais que queiram implementar projetos de modernização. Não se vai tirar recurso de uma empresa X e jogar para um tribunal Y.
Só no Rio, graças a um projeto do ex-governador
Anthony Garotinho (PMDB) a Justiça tem autonomia financeira.
O resultado é interessante. Lá, o Judiciário chega a emprestar
dinheiro para o Executivo.
Achei lamentável. O fato relevante, que é a denúncia feita
e as mortes que ocorreram a partir daí, não foi destacado.
A ONU é um organismo internacional muito respeitado. O que talvez tenha sido errado foi a palavra inspeção, que dá a idéia de interferência. Trata-se de uma observação. Não vejo nessa postura nenhuma interferência. Isso é comum.
Defendo a tese de que o Judiciário precisa ser mais transparente. Por isso, a reforma constitucional é importante, para democratizar, dar mais transparência e racionalidade à estrutura
do Judiciário. Essas reformas, no entanto, não trarão resultados imediatos para a população. A modernização – que não necessita necessariamente de aprovação no Congresso – e as mudanças constitucionais devem ser feitas em conjunto.
A reforma constitucional do Judiciário vem tramitando
há 12 anos no Congresso. No momento, ela está no Senado e
já identificamos os cinco pontos mais importantes para que seja viabilizada uma aprovação parcial, ou fatiada, da reforma. Sem
esses pontos não haverá reforma.
O primeiro é o controle externo da magistratura. A reforma do Judiciário não passou até hoje em grande parte por causa dessa proposta de controle externo, que também inclui o Ministério Público. Essa questão foi levantada desde 1988, na Constituinte.
Há uma incompreensão sobre o papel desse órgão de
controle externo. Seu objetivo é dar mais transparência para o
Judiciário, que exerce um serviço público essencial e por isso precisa
ser submetido, como os demais poderes da República, a algum tipo de controle. O problema é que o argumento de parte da magistratura
é de que estamos pretendendo ter uma interferência nas decisões judiciais, o que não é verdade.
O Judiciário é um poder conservador e é bom que seja,
pois numa certa medida ele precisa dar estabilidade às instituições.
Mas uma coisa é ser conservador, outra é ser refratário a estar submetido a um controle da sociedade.
As denúncias de irregularidades nas atividades dos juízes hoje são apuradas pelas corregedorias internas, compostas
por magistrados. Controle interno não é controle. Ninguém, na verdade,
sabe exatamente como funciona o Judiciário, como são destinados
seus recursos. Defendemos um organismo que controle os desvios funcionais dos juízes, podendo determinar inclusive a perda de cargo,
e isso os magistrados não aceitam.
Defendemos que ele seja constituído por 15 pessoas:
nove magistrados, dois membros do Ministério Público, dois advogados indicados pela OAB e dois cidadãos, um indicado pela Câmara e outro pelo Senado. A polêmica está justamente na participação
desses dois cidadãos.
Além do controle externo, há mais quatro. Um é a federalização dos crimes contra os direitos humanos. Queremos que estes crimes sejam julgados pela Justiça Federal e não submetidos às justiças estaduais, muitas vezes expostas a pressões regionais. O terceiro ponto é a autonomia para as defensorias públicas, criadas na Constituinte para defender pessoas de baixa renda. O quarto ponto é a unificação dos critérios para realização de concursos de juízes e promotores. Hoje os concursos são feitos regionalmente e há muita denúncia de irregularidade, de favorecimento. Por fim, queremos a quarentena de entrada e saída para juízes. Assim o juiz seria impedido de advogar no tribunal no qual ele exerceu ou irá exercer a sua atividade
Até o meio do ano que vem deve estar aprovado. Mas é importante ressaltar que isso não trará celeridade à Justiça, não resolverá o problema do congestionamento nos tribunais.
Vamos enviar para o Congresso um monte de projetos para uma reforma mais global e mais profunda. Há uma série de
questões relativas à atividade dos juízes que são importantes
para agilizar o funcionamento da Justiça. São temas como férias
dos juízes, nepotismo, etc.
O mau funcionamento da Justiça favorece grupos econômicos, o mau pagador e o governo que empurra muitas coisas com a barriga. Essa é a razão pela qual a reforma do Judiciário nunca avançou.
Oitenta por cento dos processos que estão nos tribunais superiores envolvem interesses da União, Estados e municípios. Não dá para resolver a questão do congestionamento do Judiciário sem pensar nisso, senão você vai discutir sempre 20% do problema. Por isso criamos há 40 dias um grupo de trabalho, que junta todos os ministérios, para definir um novo padrão de conduta da União em relação ao Judiciário. O objetivo é fazer com que a União deixe de recorrer ou deixe de propor ações sobre matérias a respeito das quais já existe jurisprudência classificada. Apesar de polêmico, entendemos que isso é factível porque a Advocacia Geral da União tem poderes para expedir uma súmula administrativa. Isso independe de lei.
É polêmico, mas, sabendo-se qual será o resultado, por
que iremos propor a ação? Não é que o Estado vá deixar de recorrer. Estamos fazendo um levantamento de todas as ações e queremos identificar quais são as situações para expedir normas relativas a
cada uma delas. O trabalho desse grupo de trabalho interministerial
será concluído em 20 dias.
Somos contra porque inibe a liberdade do juiz de primeira instância. A renovação do Direito se dá em grande parte pela atividade de juízes de primeiro grau.
Tem que se pensar num instrumento de democratização interna dos tribunais, porque a estrutura é muito verticalizada. A idéia de mandato é interessante porque não cristaliza posições durante muito tempo. Mas existem outras coisas mais importantes para se pensar.