29/10/2003 - 10:00
A palavra “gueto” tem uma etimologia obscura e suas origens se perdem na poeira do tempo. Segundo alguns linguistas, ela vem do hebraico guet, que significa separação, divórcio; para muitos, gueto provém do italiano “borguetto”, quarteirão. Para outros, ainda, o sentido da palavra é encontrado em Veneza, que foi o primeiro Estado a confinar os judeus numa área específica da cidade. Como o local escolhido era uma antiga fundição (“gheto”, em vêneto) de canhões, estaria aí a verdadeira origem da palavra. Seja como for, o fato é que, durante séculos, por motivos econômicos e religiosos, os judeus da Europa – Estados alemães, Estados Papais, Áustria, Boêmia, Polônia, Itália, França, Portugal e Espanha – foram confinados em guetos para que não se misturassem com a população cristã. Essa odiosa segregação somente começaria a ser abolida no início do século XIX, quando as tropas de Napoleão Bonaparte promoveram, à ponta de baionetas, a assimilação dos judeus no Velho Continente. No século XX, os guetos seriam recriados na Europa oriental pela barbárie nazista, desta feita para agrupar os judeus antes de serem exterminados na “solução final”. Depois da derrocada do III Reich, a idéia de segregação étnica foi amplamente condenada, ficando restrita a alguns Estados-párias, como a África do Sul sob o regime racista do apartheid, e a Estados sulistas americanos, até a década de 60.
Por ironia da história, no início do século XXI, a idéia de gueto
está sendo tragicamente ressuscitada pelo governo de Israel,
através da construção de um muro de 245 quilômetros de extensão
e três metrosde altura ao longo da fronteira com a Cisjordânia, que penetra profundamente em território palestino. “A construção da cerca continuará e seguiremos protegendo a segurança dos cidadãos israelenses”, disse o vice-primeiro-ministro de Israel, Ehud Olmert, reagindo à Assembléia Geral da ONU, que, na quarta-feira 22, aprovou, por 144 votos contra quatro e 12 abstenções, uma resolução exigindo que Israel interrompa a construção e desfaça a barreira. Como as resoluções da ONU não têm força de lei, Israel fez o que sempre faz quando são votadas decisões que contrariem sua raison d’etat: simplesmente a ignorou, tachando-a de “hostil” ao país.
O governo do premiê Ariel Sharon justifica a construção do muro
como medida de segurança para evitar ataques terroristas de
grupos palestinos, mas os palestinos afirmam que a medida significa a destruição de plantações e perda de recursos hídricos, numa anexação, de fato, de territórios da Cisjordânia a Israel. “Israel sabe o que faz. Estas são as melhores terras da Cisjordânia porque há muita água. Vão matar, a fogo lento, milhares de pessoas”, disse Ali Zied, membro de um sindicato de agricultores palestino.
Quando visitou Berlim, em 1961, o presidente americano John F. Kennedy disse que a construção do “muro da vergonha”, como era conhecido o muro erigido pela Alemanha oriental (comunista) para impedir a fuga de seus cidadãos para o Ocidente, era uma demonstração do fracasso do regime comunista. “Ich bin ein Berliner” (eu sou um berlinense), disse JFK, em alemão, para delírio dos berlinenses. Desgraçadamente, diante do muro israelense, ninguém espera que um estadista ocidental, muito menos americano, seja capaz de dizer “eu sou um palestino”.