Reza a lenda que, ao banhar-se num rio, uma bela índia engravidou de uma sucuri e deu à luz um casal de gêmeos, o gentil Honorato e a perversa Maria Caninana. Amedrontada com suas línguas pontudas, os olhos oblíquos e o corpo recoberto por escamas, ela abandonou os filhos no rio Tocantins para que vivessem como cobras. Cansado das maldades da irmã, Honorato matou Caninana e, como castigo, virou uma serpente monstruosa. Até hoje a cobra Honorato estaria rondando igarapés e rios da Amazônia.

Esse mito, conhecido como Cobra Grande, é um dos mais conhecidos da região amazônica e é um exemplo de que, desde os tempos de Adão e Eva, a serpente tem lugar cativo no imaginário como um animal vil e digno de repulsa. No Brasil, há mais de 20 mil casos de acidentes com cobras todos os anos, nem todos no campo. Das cerca de 300 espécies de cobras brasileiras, só 80 são venenosas. Entre elas a jararaca, o urutu, a cascavel, a surucucu e a coral verdadeira. Dessas, a jararaca é a de maior importância no País por ser responsável por mais de quatro em cada cinco acidentes. Seu veneno não é tão fulminante. A picada causa sangramento intenso e necrose no local, mas pode ser tratada. Já sua parente, a jararaca ilhoa, só encontrada na Ilha da Queimada Grande, em São Paulo, tem veneno mais poderoso, mas o número de acidentes é reduzido porque ela está praticamente isolada. Conhecida pelo seu guizo na cauda, a cascavel provoca paralisia muscular e ocupa o segundo lugar em número de acidentes. A temida cobra coral verdadeira, responsável por míseros 2% dos casos de acidentes, é pequena e vive enterrada. Seu veneno, porém, é o mais potente e letal de todas as espécies.

Para traçar uma radiografia das serpentes e de outros animais venenosos como aranhas, escorpiões, insetos e animais aquáticos, cinco médicos do Instituto Butantan de São Paulo, e mais de 40 colaboradores, lançaram o livro Animais peçonhentos no Brasil – biologia, clínica e terapêutica dos acidentes. A obra consumiu seis anos de trabalho e reúne a história e a origem dos animais, as principais espécies causadoras de acidentes, os locais onde elas são encontradas, os tratamentos, além de dicas e curiosidades. “É uma visão global, que pode interessar a qualquer pessoa”, diz João Luiz da Costa Cardoso, um dos autores.

A enciclopédia ajuda a desmistificar algumas idéias, como a prática perigosa de fazer torniquete no local da picada de cobra para que o veneno não se espalhe no sangue. Quanto mais o veneno se dilui na corrente sanguínea, menor sua periculosidade. O livro revela também os hábitos alimentares e as características de reprodução das cobras, como o fato de as fêmeas serem maiores do que os machos para abrigar os ovos. Todas as serpentes são carnívoras e ingerem as presaslinteiras. Seus dentes servem só para agarrar e lançar o veneno. “O importante é o médico ter condições de fazer um rápido diagnóstico”, diz Fan Hui Wen diretora do Hospital Vital Brazil.

Escorpiões – Considerados um dos animais mais antigos do planeta, os escorpiões andam pela Terra há pelo menos 400 milhões de anos. Hoje eles viraram um problema de saúde pública. Duas espécies são responsáveis pelos acidentes mais graves ocorridos no Brasil, o escorpião-amarelo, o mais agressivo deles, e o escorpião-marrom. O amarelo antes era visto em número reduzido nos Estados de Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo, Paraná, Rio de Janeiro e Goiás. Os cientistas revelam ainda que houve um aumento da sua incidência em outras regiões, entre as quais o Distrito Federal, o interior e a periferia da cidade de São Paulo. O motivo é pitoresco: a fêmea se reproduz sozinha, sem a ajuda do macho. “Basta uma carona em um caminhão para ela chegar em qualquer parte do País”, diz Cardoso. Os escorpiões têm hábitos noturnos e se alimentam de baratas. A falta de saneamento básico é um prato cheio para que eles se reproduzam em velocidade alarmante. Crianças de até sete anos são as maiores vítimas fatais dos escorpiões.

Hábitos curiosos não são exclusividade das cobras e dos escorpiões. As aranhas são quase uma unanimidade, causam medo em crianças e adultos. Como não sabemos diferenciar a aranha peçonhenta de uma inofensiva, a reação automática é se afastar de teias povoadas ou covardemente matar o bichinho antes que ele nos ataque. Os pesquisadores dão uma dica definitiva para fugir de aracnídeos venenosos. É só reparar no desenho da teia. Se for bonita e simétrica, relaxe. Quanto mais bela e perfeita a teia, mais inofensiva
será a aranha. “A aranha que faz teia bonita não faz mal ao ser
humano”, garante Cardoso. No Brasil, as aranhas peçonhentas de
maior importância médica são a armadeira, que salta a até 40 cm
de distância e vive em lugares úmidos e escuros, e a aranha-marrom, encontrada entre telhas e tijolos, ou dentro de roupas e sapatos. Ela não ataca, mas pica quando pressionada contra o corpo. A famosa viúva-negra, apesar de medir entre oito e 12 milímetros, pode ser
fatal, embora sejam raras suas picadas.

A tão temida e grandalhona caranguejeira, que pode ter o tamanho de uma régua de 30 cm, não é venenosa. No máximo causa uma reação alérgica ao soltar seus minúsculos pêlos na direção da vítima. Animais menos aterrorizantes, mas não menos importantes do ponto de vista médico, também são descritos no livro. São insetos como formigas, abelhas, vespas e lagartas, e animais aquáticos como águas-vivas, ouriços e arraias. Mesmo que provoquem menos arrepios, eles causam ferimentos sérios. A boa notícia é que com um diagnóstico rápido e pronto atendimento hoje se salvam muito mais vidas. O Instituto Butantan consegue produzir soro suficiente para tratar com sucesso quase todos os tipos de acidentes envolvendo animais peçonhentos, sejam cobras, escorpiões, aranhas ou lagartas.

 

Ilha das Cobras

Localizada entre as cidades de Itanhaém e Peruíbe, no litoral sul de São Paulo, a Ilha da Queimada Grande é envolta em mistérios. Seu nome teria surgido quando a Marinha e os cientistas do Instituto Butantan colocaram fogo na ilha, na década de 30, após perder o controle sobre algumas experiências com cobras, que se multiplicaram e se tornaram hermafroditas, se reproduzindo sozinhas. Considerada o maior serpentário natural do mundo, a ilha abriga cerca de três mil jararacas ilhoa (Bothrops insularis), espécie exclusiva dali com hábitos e características diferentes das jararacas do continente. As ilhoa se alimentam de pássaros e foram vistas a quatro metros de altura do solo, enroladas nos galhos das árvores. O que torna a espécie fascinante é a raridade e o poder de seu veneno, mais letal do que o das outras da sua família. “Por ser exótica e famosa, ela atrai a atenção de colecionadores”, diz Danielle Paludo, da Estação Ecológica dos Tupiniquins, responsável pelas ilhas do litoral sul paulista. O acesso à ilha é restrito a pesquisadores, mas uma jararaca ilhoa (foto) foi encontrada à venda em Amsterdã. “A fiscalização lá é de bêbado”, diz Marcelo Duarte, biólogo do Butantan. Uma das formas de proteção à ilha é transformá-la em Parque Nacional Marinho. Só assim, a Ilha da Queimada Grande, um pedaço de paraíso com imensa importância ecológica e científica, estará a salvo.