29/10/2003 - 10:00
A muralha de rochedos de
coral que deu nome à capital pernambucana sempre serviu
de proteção contra o açoite
das ondas e das tempestades
de vento. O ancoradouro natural só não conseguiu barrar a fúria dos piratas e conquistadores europeus, o que explica a profusão de fortes que se misturam à arquitetura colonial do Bairro do Recife antigo, o berço da cidade. Muito antes de se tornar um pólo turístico, cultural
e carnavalesco dos dias de hoje, Recife não só assistiu ao vai-e-vem
de navios que lhe conferiu o título de maior porto das Américas como abrigou a sede da primeira sinagoga no continente. Como qualquer
região portuária, o bairro testemunhou sua lenta decadência. Com a modernização do século XX, a região virou zona boêmia, com prostíbulos famosos e boates que serviam à fina flor da sociedade nordestina.
Foi só no final dos anos 90, durante os esforços de recuperação
dos monumentos antigos, que a capital encontrou sua nova vocação.
As esquinas, edificações e marcos históricos que testemunharam
a passagem dos portugueses e holandeses deram lugar a empresas
de desenvolvimento de programas para computador. Fruto de uma cooperação entre governo, universidade e empresas, o porto do
Recife recebeu nos últimos três anos R$ 33 milhões dos cofres
do Estado, R$ 11 milhões da iniciativa privada e espera para
novembro a liberação de US$ 10 milhões, vindos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
O pólo tecnológico conquista
sua maturidade aos poucos.
Num gesto simbólico, desde
outubro a IBM transferiu sua sede pernambucana do centro da capital para a antiga zona portuária. A vista deslumbrante do mar cor de turquesa e da barreira de arrecifes foi um fator importante para a mudança, mas não o único. A empresa americana pegou carona num projeto que já resultou na revitalização de quase 22 mil
metros quadrados de área e na instalação de 26 quilômetros de cabos
de fibra óptica para interligar os prédios históricos. Ali, ela pretende desenvolver programas de computador baseados no software livre de pagamento de direitos autorais, o Linux. A gigante da informática vai fazer companhia à maior incubadora do País, que reúne as empresas nascidas nos bancos das universidades, em particular a Universidade Federal do Pernambuco (UFPE). Vêm de lá, aliás, os dois idealizadores
do porto digital: Cláudio Marinho, secretário de Ciência e Tecnologia de Pernambuco, e Silvio Meira, o cientista chefe do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), que na definição de seu criador
é uma “usina geradora de empresas”. Até agora, o pólo do Recife já deu à luz 66 empresas, que empregam 1.127 profissionais. Em negócios, significa US$ 200 milhões de faturamento, ou 1% do PIB de Pernambuco. É pouco se comparado ao mercado nacional de software, que no ano passado movimentou US$ 8 bilhões, mas é um primeiro passo. “Dentro
de 15 anos, queremos que a produção de software na região contribua com 10% do PIB, ou US$ 2 bilhões”, sonha o professor Meira. Significa algo como 200 empresas com faturamento médio de US$ 10 milhões
no coração do bairro mais antigo de Pernambuco.
Um dos méritos do porto de Recife é reconhecer que o mercado nacional de software não tem condições de absorver tamanha produção. “Nosso mercado consumidor está lá fora”, calcula Meira. Por isso, cada vez mais os funcionários do porto digital do Recife perseguem objetivos práticos, como certificações internacionais que possam garantir padrões de qualidade internacional a seus softwares.
“Estamos longe da noção das carências típicas do Nordeste. Aqui é mais uma ilha da fantasia real”, compara Meira. Uma das idéias que circulam entre os jovens empresários é o fechamento das quatro pontes que dão acesso ao bairro antigo. Assim, só seria possível circular pelas ruas de calçamento de pedra a bordo de bondes ou a pé. “Sabemos bem que,
se criarmos uma ilha de riqueza num mar de pobreza, ela será destruída”, explica Meira. “O esforço não adianta nada se não investirmos em projetos sociais”, completa Cláudio Marinho.
Uma das empresas que surgiram dentro do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife foi a Jynx. A turma de cinco ex-alunos da UFPE e de colegas de praia resolveu transformar em fonte de renda seu passatempo favorito: os joguinhos para computador. Foi assim que nasceu o FutSim, simulador de um clube futebolístico, produto mais famoso da empresa nascida em 1997. Eles jogam todos os dias e testaram 26 jogos até chegar à fórmula do FutSim, que negociam com a China e a Alemanha. De olho numa fatia do bolo de US$ 30 bilhões do mercado mundial de jogos, o simulador é apenas um de seus produtos e por enquanto tem 200 usuários, que pagam até R$ 10 por mês. No FutSim, o jogador faz as vezes de técnico, planeja os lances, negocia ofertas de compra e venda de jogadores. “Trabalhamos sem férias, quase como animais”, conta Jeferson Valadares, um dos sócios.
O porto digital mudou a paisagem do centro antigo. O ambiente fértil e informal explodiu para as ruas. Das conversas do almoço, muitas vezes surge um novo negócio, uma idéia para um software ou decisões prosaicas. Para não trair a fama pernambucana, os funcionários
do porto não fazem feio e já formaram três blocos de Carnaval.