Mais de sete mil quilômetros separam Washington D.C. da pequena Caetés, um ex-distrito
de Garanhuns, no agreste pernambucano, onde há 57 anos nasceu Luiz Inácio Lula da Silva. É uma distância tão grande quanto o Brasil da era Fernando Henrique Cardoso tem do país que começou na quarta-feira 1º, com a histórica posse do ex-metalúrgico. Entra a prioridade para a área social e sai o receituário neoliberal criado 13 anos atrás, exatamente quando Lula se arrojava em sua primeira candidatura
à Presidência da República. Naquela época, o economista britânico John Williamson cunhou a expressão “Consenso de Washington”: um pacote
de medidas amargas com severa disciplina fiscal para se alcançar o paraíso prometido da estabilidade monetária. O engenhoso bordão acabou traduzindo as políticas ditadas pelo Fundo Monetário Internacional aos vulneráveis países do Terceiro Mundo. Os resultados foram sucessivos apertos internos e sacrifícios sociais. A cantilena da fidelidade no cumprimento de metas fiscais, acordos com o FMI e outras variantes
do “economês” globalizado invadiu o cotidiano do brasileiro e permeou
os oito anos de FHC através dos cartesianos raciocínios do ex-ministro Pedro Malan. Em apenas 45 minutos, de um meticuloso discurso de
posse, garimpado numa espécie de assembléia da cúpula petista,
o consenso da década passada dá lugar a um novo: o Consenso
de Caetés. Uma expressão que simboliza a alteração radical do eixo
de prioridades governamentais. A ditadura dos economistas é abolida
e toda a ênfase, prometeu o presidente, será dada para as ações
sociais. “Não perderemos de vista que o ser humano é o destinatário último dos resultados das negociações”, disse Lula, sepultando
o frio discurso do equilíbrio das equações matemáticas.

Durante seu principal pronunciamento e nas 3.826 palavras lidas pelo presidente
Lula no Congresso Nacional, não houve nenhuma menção direta
aos acordos com o FMI, às metas fiscais e inflacionárias. Lula foi
mais eloquente exatamente quando deixou de dizer. Fez uma rápida afirmação prometendo “combate implacável à inflação” e nada mais sobre macroeconomia. Não que o governo pretenda negligenciar a estabilidade econômica, romper contratos ou ignorar os acordos com
o Fundo, totem de um continuísmo que engulha alguns segmentos petistas. O eixo é que mudou. A nova ordem, explicitada nos bastidores pelo próprio presidente Lula e presente em todas as entrelinhas dos discursos oficiais, é tirar o noticiário econômico do foco e centrar fogo nas ações sociais. O tom conciliador do discurso petista durante os
dois meses da transição, adotado principalmente pelo ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e os frequentes elogios à transparência da administração de FHC acabaram desencadeando desentendimentos no PT. Desagradaram xiitas e boa parte dos moderados do partido. A estratégia para evitar desgastes é empurrar o debate econômico para debaixo do tapete. Ainda é cedo para prever se a tática será eficaz.
“O governo Lula vai tirar a economia da pauta. A equipe econômica
deve sair do cenário. Palocci e equipe vão trabalhar em silêncio. O governo não deve ter a economia como seu coração. O coração é o social”, revela uma estrela petista, explicando o objetivo exato que o presidente Lula buscou nos dois discursos que causaram fervor na
maior manifestação já vista na posse de um presidente brasileiro.

A comemoração petista começou antes, na noite do dia 31. Um réveillon inesquecível para Brasília, que, aos poucos, ia sendo invadida por milhares de caravanas de todos os cantos do País. O presidente surpreendeu e rompeu o ano numa reunião organizada pelo vice, José Alencar, no Hotel Nacional, onde se deliciou com as iguarias e o nome do mestre-cuca da festa, Karl Marx, homônimo do pensador que escreveu a bíblia econômica da esquerda, O capital. Em seguida, em outro hotel, o luxuoso Blue Tree Park, em frente a sua nova residência, o Palácio da Alvorada, Lula festejou a passagem do ano com a família, amigos e ministros, como Antônio Palocci (Fazenda), Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento, Indústria e Comércio), Luiz Gushiken (Secretaria de Comunicação), Jaques Wagner (Trabalho) e Gilberto Gil (Cultura). A maratona do dia seguinte seria histórica, mas longa.

Festa cívica – Uma multidão recorde de 150 mil pessoas tomou a Esplanada dos Ministérios logo no início da manhã do primeiro dia
de 2003 e transformou as sisudas avenidas do centro do poder num borbulhante mar vermelho, de camisas e bandeiras. Entre elas estavam milhares de militantes anônimos da esquerda, misturados a muitos
jovens, trabalhadores e pessoas humildes, desconhecidas dos palácios.
O povo aderiu imediatamente ao estilo inaugurado por Lula, o de
quebrar protocolos. No auge do entusiasmo, alguns manifestantes
mais afoitos furaram o cerco da segurança, entraram no espelho
d’água em frente ao Congresso e jogaram água nos policiais.

Às 15h05, o ex-operário utilizou exatos 20 segundos para cumprir, dentro do Congresso, o juramento de respeito à Constituição. Muitos daqueles que acompanhavam a posse pelos telões espalhados na rua ainda se entreolhavam incrédulos. Entre lágrimas tragadas silenciosamente e emoções abertas, ambas encobertas pelo estrépito eufórico da multidão, muitos custavam a acreditar que um ex-operário, encarnando um sonho que tantos perseguiram por tanto tempo, se transformava naquele momento no 30º presidente da história brasileira (ISTOÉ adota o critério do conceituado historiador Hélio Silva, em que não são contabilizadas juntas militares e interinidades presidenciais muito curtas). Na tarde do dia 1º de janeiro, de uma garoa miúda em Brasília, os militantes e simpatizantes tiveram de enfrentar apenas as incertezas climáticas, se incomodar – pouco – com um vento frio muito tênue e não mais com as borrascas dos dias anteriores. Depois de desfilar em carro aberto por 17 minutos no meio do povo dentro do tradicional Rolls Royce preto, que já dá sinais de fadiga (o carro é de 1953), o presidente iniciava a parte mais formal e solene da cerimônia que ele persegue há 13 anos.

O ritual no Congresso Nacional, com revista às tropas, juramentos e assinatura do termo de posse, começou às 14h51. O presidente Lula, entre abraços efusivos e apertos de mão calorosos, demorou oito intermináveis minutos para dar os 20 passos dentro do plenário da Câmara que o separavam da abertura oficial de sessão. Se havia ansiedade para chegar logo lá, Lula não demonstrou. Sorriu, acenou e abraçou muitos convidados e parlamentares. Várias vezes manifestou desconforto com a bursite – agravada depois que um professor paulista pulou em seu pescoço após driblar a segurança – e se incomodou muito com a transpiração. Encharcou vários lenços e chegou a trocar de camisa entre a cerimônia do Congresso e a do Planalto. Sob os gritos nada protocolares de “Olê, Olê, Olê Olá, Lula, Lula”, o presidente fez o juramento constitucional às 15h05 e, três minutos depois, o presidente do Congresso, Ramez Tebet (PMDB-MS), declarou formalmente empossados Luiz Inácio Lula da Silva e o vice, José Alencar (PL-MG), sob aplausos prolongados dos 1.500 convidados que engarrafaram o plenário e os salões próximos. Onze minutos depois, às 15h19, se divertindo com a informalidade da sessão e esbanjando bom humor – “vamos quebrar o protocolo, mas nem tanto” –, o presidente assumiu um ar solene e fez o mais importante discurso da posse a partir de um conceito-síntese: “Mudança”. É a primeira palavra do pronunciamento que se repetiu 14 vezes nas páginas seguintes e ancorou toda a sua fala: “Mudança. Esta
é a palavra-chave. Esta foi a grande mensagem da sociedade brasileira nas eleições de outubro.” Mais adiante reiterou: “Foi para isso que o
povo brasileiro me elegeu presidente da República. Para mudar. Este
foi o sentido de cada voto dado a mim e ao meu bravo companheiro
José Alencar.” Em ritmo pausado e tom comedido, Lula disse que o Brasil estava ingressando em um novo período histórico: “Hoje é o dia do reencontro do Brasil consigo mesmo.” Distribuiu recados e não evitou as previsíveis críticas ao modelo econômico adotado na era FHC. “Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento, produziu estagnação e fome. Diante do fracasso de uma cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo, da desintegração das famílias e das comunidades. Diante das ameaças à soberania nacional, da precariedade avassaladora da segurança pública, do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens.Diante do impasse econômico, social e moral do País – a sociedade brasileira escolheu mudar. E começou, ela mesma, a promover a mudança necessária”, espetou Lula.

 

Os poucos tucanos que foram à posse – apenas quatro aves raras –, claro, torceram o bico. Mudança só não foi mais verbalizada que a fome, citada 16 vezes e contra a qual o presidente convocou o País para um mutirão nacional através do programa Fome Zero. “Enquanto houver um irmão brasileiro, ou uma irmã brasileira passando fome, teremos motivos de sobra para nos cobrir de vergonha”, exortou Lula, comparando a
causa à redemocratização do Brasil. As palmas interromperam o presidente Lula por 31 vezes. Os aplausos mais prolongados ecoaram quando ele sinalizou um enfrentamento à nação mais poderosa do planeta, os Estados Unidos. O presidente encampou uma solução pacífica e negociada para a guerra iminente no Oriente Médio. Nas primeiras filas, os mais entusiasmados com a retórica eram os presidentes de Cuba, Fidel Castro, e da Venezuela, Hugo Chávez. Na última hora Lula improvisou. Bateu firme na corrupção, no desperdício e na sonegação. O texto previamente traduzido e entregue às delegações internacionais não
trazia a indignação do presidente contra a corrupção. “Ser honesto é mais do que não roubar e não deixar roubar. É também aplicar com eficiência e transparência, sem desperdícios, os recursos públicos focados em resultados sociais concretos”, disse ele. A mais reluzente ponta da estrela vermelha brilhou sozinha. Alguns parlamentares, como
o deputado Severino Cavalcanti (PPB-PE) e o senador Ramez Tebet, tentaram ganhar seus minutinhos de fama no rastro do presidente.

Enfim o Planalto – Depois de deixar o Congresso, acompanhado do vice, José Alencar, Lula finalmente chegou ao Palácio do Planalto. Às 17h, os dois subiram a rampa: foram 35 segundos de escalada até o alto, onde foram recebidos pela dupla que saía de cena, FHC e Marco Maciel. Lula deu um caloroso abraço em Fernando Henrique. Os quatro demoraram três minutos para chegar ao parlatório, onde o Brasil assistiu a uma cena que não se repetia há 42 anos: a transmissão da faixa de um presidente eleito para o seu sucessor, também eleito pelo povo. A última foi em 31 de janeiro de 1961,
quando Juscelino Kubitschek passou o cargo para Jânio Quadros. Lula
e FHC estavam emocionados. Ao tirar a faixa, Fernando Henrique deixou os óculos caírem. Lula se abaixou para devolvê-los ao antecessor, provocando uma atrapalhada dança de braços. Dentro do Salão Nobre
do Planalto, a descontração era total e contagiava os mil convidados oficiais, entre parentes e amigos de Lula, artistas, pesos pesados da economia, tucanos, petistas xiitas e moderados e representantes do MST. Uma fauna que se aglomerou nas vidraças internas do palácio
para assistir à cena histórica que ocorria do lado de fora. Quinze
minutos depois, FHC e Lula já estavam dentro do salão recebendo
os cumprimentos. O presidente deu posse a seu Ministério. Alguns,
como José Dirceu (Casa Civil), Marina Silva (Meio Ambiente) e Luiz Gushiken, tinham a claque mais barulhenta da platéia. As sucessivas quebras do protocolo levaram os pomposos funcionários do cerimonial do Planalto à loucura. “Os presentes, por favor, retornem aos seus lugares”, pediam. Mas eram ignorados. Os convidados subiam nas cadeiras, circulavam em frente às câmeras de tevê, tiravam fotos, faziam piadinhas, falavam alto. Em meio a tanta descontração, tucanos e petistas esqueceram as divergências por um momento. “Obrigado pelos charutos”, disse Dirceu a Pedro Malan. Depois de levar FHC e dona Ruth ao elevador privativo do salão leste, onde se despediram, Lula e Marisa Letícia da Silva, com seu marcante vestido vermelho, desceram a rampa e seguiram direto para o parlatório, onde a multidão os aguardava.

Ao povo, comprimido na praça úmida em frente ao Palácio do Planalto, Lula reservou um discurso emocional, que durou 15 minutos e começou com o tradicional cumprimento petista “companheiros e companheiras”. O presidente fez os habituais gestos da vitória, mandou beijos e mais beijos. O clima despojado contagiou até os convidados estrangeiros, sentados num palanque coberto ao lado do parlatório. Empolgado, o cubano Fidel Castro reproduzia com a mão o “L” de Lula, quando era aclamado pelo público. Falando de improviso e exibindo toda a sua informalidade, estilo com o qual a liturgia do poder terá de se harmonizar, Lula reafirmou os compromissos essenciais da campanha – “Em nenhum momento vacilarei em cumprir cada palavra. Não fizemos nenhuma promessa absurda” – e se disse consciente da responsabilidade que separa a retórica da prática.

 

Luiz Inácio falava para milhares de Silvas e a eles sintetizou, numa frase, a esperança quase mítica da qual ele é o depositário. “Eu não sou
o resultado de uma eleição. Eu sou o resultado de uma história. Eu estou concretizando o sonho de gerações e gerações que, antes de mim, tentaram e não conseguiram.” Em seguida, prometeu franqueza. “Quando eu não puder fazer uma coisa, não terei nenhuma dúvida
de ser honesto e dizer que não sei fazer,
que não posso fazer e que não há condições. Tratarei vocês com o mesmo respeito com
que trato os meus filhos e meus netos”,
afirmou para uma multidão delirante.

Nem os pequenos incidentes com a segurança tiraram o bom humor do presidente. Lula foi galante com a mulher, a quem não cansou de elogiar durante toda a campanha: “Marisa está muito bonita, toda elegante.” Garantiu que naquele momento “não havia na face da terra homem mais otimista” do que ele. E se comprometeu, diante da população ruidosa, a cuidar da educação, da saúde, da previdência social, fazer a reforma agrária e acabar com a fome no País. Mas pediu a ajuda de todos para governar: “A responsabilidade não é apenas minha, é nossa,
do povo brasileiro que me colocou aqui.” A despedida do povo
em frente ao Planalto foi às 18h30, exatos 90 minutos depois
de Lula finalmente ter chegado lá. Agora é que o jogo começa.