Uma semana depois de ter dado um basta ao bate-boca entre alguns de seus ministros sobre como o Brasil deveria se comportar nas negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), reafirmando que o negociador chefe era o ministro da Relações Exteriores, embaixador Celso Amorim, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolveu colocar mais lenha na fogueira. Na segunda-feira 20, ao abrir um seminário na Câmara dos Deputados sobre a participação parlamentar na Alca, Lula criticou duramente a posição americana de querer impor seu modelo goela abaixo do Brasil e da Argentina. “O foco da questão não é dizer sim ou não à Alca, mas definir qual a Alca que nos interessa. O que não faz sentido é conceder acesso preferencial a nosso mercado sem uma contrapartida em áreas onde somos mais competitivos, como na agricultura”, afirmou Lula. O presidente criticou ainda a intenção declarada dos americanos de tirar das negociações os subsídios agrícolas e a regras antidumping. “Isso cria evidentes limitações tanto para as negociações quanto para o próprio conceito da Alca”, disse o presidente, fazendo eco exatamente às posições defendidas pelo Itamaraty.

O discurso de Lula não foi bem recebido pelo americano Peter Allgeier, co-presidente da Alca, função que divide com o embaixador brasileiro Adhemar Bahadian. “Será melhor que todos os 34 países assinem o acordo da Alca em janeiro de 2005. Será melhor para todos, mas se alguém quiser ficar fora, é um direito que lhe cabe”, atacou Allgeier. O representante americano reafirmou que os EUA não querem discutir fim ou redução dos subsídios agrícolas e revisão das regras anti-dumping na Alca, deixando esses temas para a OMC. Já o Brasil tem posição oposta, preferindo deixar para a OMC questões como propriedade intelectual e compras governamentais, pontos que os EUA insistem em colocar na Alca. Mas, se Allgeier queria intimidar, sua retórica teve efeito contrário. Primeiro foi o embaixador Bahadian que, ao discursar na Câmara, disse que a Alca corria o risco de não sair da condição de projeto, caso os EUA insistissem em suas posições, inaceitáveis para o Brasil e seu principal parceiro, a Argentina. “Os americanos agem como subdesenvolvidos protecionistas quando o assunto é fim de barreiras ao suco de laranja, agricultura e aço. E como desenvolvidos quando querem abrir nosso mercado”, atacou, para satisfação dos parlamentares e do secretário-geral do Itamaraty, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, um crítico feroz da Alca, presente à reunião no papel de chanceler.

Pinheiro Guimarães teve uma semana de glórias. Como estava exercendo o cargo de chanceler interinamente (Celso Amorim estava na Índia, em viagem marcada para coincidir com o evento da Alca no Congresso), recebeu todas as honras de Lula durante saudação aos ministros em seu discurso na segunda-feira 20. Na terça-feira, foi aplaudido de pé pelos parlamentares – brasileiros e dos demais países das Américas presentes – antes mesmo de falar, em tom ainda mais duro do que Bahadian. “As negociações são estratégicas e vão definir não apenas aspectos comerciais, mas o destino político dos países. Por isso, é importante
que os países latino-americanos defendam sua soberania”, afirmou.
A posição do Itamaraty de que a Alca, caso os EUA insistam em sua intransigência, poderá não sair do papel ganhou na quarta-feira um aliado insuspeito. Bem ao estilo do governo Lula, foi escalado para atacar as declarações de Allgeier exatamente um dos ministros que, antes da bronca presidencial, tinham posição diferente. “Uma Alca sem o Brasil não é uma Alca, é uma Alca B”, atacou o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues. O ministro disse também que, “nos interesses brasileiros, o agronegócio é fundamental e por isso temos que, sim, discutir os subsídios dentro do âmbito da Alca”.

Embate – Na mesma quarta-feira, quem subiu de tom nas críticas aos Estados Unidos foi o chanceler argentino Rafael Bielsa. Mostrando total comunhão de idéias com o Brasil, ele afirmou que, “se eu fosse os Estados Unidos, preferiria uma Alca com o Brasil do que uma Alca sem o Brasil”. Bielsa disse que, se a Alca, por causa dessa divergência entre a posição do Brasil e da Argentina e a dos EUA, não se concretizar, “não será nenhum apocalipse”. Para o chanceler argentino, existe vida depois da Alca, caso ela termine em fracasso. “Estamos negociando para que ela seja um processo onde haja vida. É verdade que essas negociações estão atrasadas, mas não há sentido em apressá-las”, disse Bielsa, praticamente ecoando declarações recentes dos diplomatas brasileiros. No Itamaraty, as afirmações do chanceler argentino foram recebidas com satisfação, pois confirmam a unidade entre Brasil e Argentina reafirmada na recente visita de Lula ao país. Diplomatas disseram a ISTOÉ que as declarações de Lula, colocando Pinheiro Guimarães em posição de destaque, e a tomada de posição do ministro da Agricultura dentro da linha defendida pelo Itamaraty serviram para praticamente anular o trabalho de lobby favorável à Alca que, de qualquer modo, começava a ganhar corpo em alguns órgãos de imprensa, estimulados por instituições de pesquisa ligadas a ex-diplomatas. O próximo embate da Alca já tem local e data marcados: de 16 a 21 de novembro em Miami. Lá, Brasil e Argentina vão reafirmar sua união, levando junto o Mercosul. No Itamaraty, a reunião é encarada como uma boa oportunidade para os EUA decidirem se querem uma Alca forte, com a presença do Brasil e da Argentina, ou apenas um “Naftão”, versão ligeiramente ampliada do bloco econômico que formam com o Canadá e o México.