FOTOS: DANIELA DACORSO/AG. ISTOÉ

MUDANÇAS Yvonne de Mello com as crianças: sem quadro-negro nem dever de casa

Matheus de Lima Sales, 11 anos, já foi confundido com uma vítima de tiroteio na Baixa do Sapateiro, uma das favelas do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. "Um garoto com o mesmo nome morreu em frente de casa e todo mundo achou que era eu", lembra o menino, referindo-se a Mateus Rodrigues Carvalho, 8 anos, atingido por uma bala perdida num confronto entre policiais e traficantes em dezembro do ano passado. "Fiquei muito assustado no dia, mas a gente está meio acostumado com essas coisas", diz. Não é bem assim. Ninguém se acostuma à violência, ao risco iminente da morte, muito menos as crianças.

O trauma da ameaça constante dos que vivem em zonas de risco se reflete nas salas de aula. Eles têm dificuldade de aprender, de memorizar, de se concentrar. São meninos e meninas com um grande histórico de perdas – de familiares, colegas, vizinhos. Aulas tradicionais não conseguem convencê-los de que é importante estudar, até para se defender melhor na vida. Prova disso é que o analfabetismo funcional – alunos que mal entendem o que está escrito e tampouco escrevem direito – é maior nessas áreas. Chega a 19,2%, enquanto a média da rede pública é de 14,6%.

A boa-nova é que métodos especiais conseguem. A artista plástica carioca Yvonne Bezerra de Mello, conhecida por realizar trabalhos solidários com menores de rua, criou uma metodologia de ensino para crianças traumatizadas por troca de tiros, agressões físicas, abandono e privações – e que a partir de agosto será adotada em 147 colégios municipais do Rio em zonas de risco.

"Nosso objetivo é melhorar o aproveitamento das crianças", diz a secretária municipal de Educação, Cláudia Costin. "Conheci o trabalho da Yvonne ao pesquisar métodos de ensino alternativos no Brasil e o sistema dela se mostrou o mais adequado." O que será feito na rede municipal carioca foi testado no projeto Uerê, que Yvonne – doutora em políticas públicas e direitos humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pela Loyola Univesity, de Chicago – coordena desde 1998 e que atende estudantes com problemas de aprendizado na favela da Maré. "As experiências vão se acumulando na cabeça dessas crianças como se fosse uma lata de lixo, impedindo que o cérebro funcione normalmente", diz a pesquisadora. A metodologia já foi testada, inclusive, fora do Brasil, em zonas de conflito na África. Por conta dos resultados, Yvonne recebeu o Prêmio Paz no Mundo e Cidadania, da União Europeia, em 2007.

Há jovens que chegam ao Uerê tomando remédios para problemas neurológicos ou psiquiátricos. "Infelizmente, é comum que os professores façam esses diagnósticos", diz a psicóloga escolar Vera Lúcia Trindade, da Universidade Estadual do Rio. Falta de concentração, dificuldade de memorização, irritabilidade, agressividade, problemas de audição e dores pelo corpo são alguns dos sinais apresentados por crianças que vivem em áreas de risco.

Um dos pontos principais dessa nova metodologia é estimular o cérebro dos alunos com muita conversa e alternância de atividades. A aula começa com um bate-papo. Os alunos falam sobre as coisas boas e ruins do dia anterior, afastando as más lembranças e liberando a cabeça para o aprendizado. O tema da violência aparece com frequência. Ao falar do seu dia, Ágatha Barbosa de Souza, 8 anos, disse: "Tenho trauma do caveirão." A garota referia-se ao veículo blindado usado pela polícia nas operações em favelas. "Ela tam bém enfrenta proble mas de bebida na família. Chegou ao Uerê a nal fabeta e ho je é uma das me lhores alunas", conta Yvonne.

FOTOS: DANIELA DACORSO/AG. ISTOÉ

ESPERANÇA Matheus Sales, Ágatha Souza e Thais Oliveira: aprendizado em projeto piloto na favela da Maré

Thais de Souza Oliveira, 11 anos , não sabia ler nem escrever. "Na escola a pro fe s sora colocava a matéria no quadro, pedia para a gente copiar e saía da sala", lembra a menina. No Uerê, professor não tem mesa. Ele deve interagir com os alunos sempre, se aproximar deles. "Coloco a mão no queixo pa ra que eles olhem para mim. Eles não estão acostumados a conversar olhando no olho em casa e não sabem focar o olhar", diz Yvon ne. O quadro-negro quase não é usado, e o conteúdo é transmitido oralmente, como se o educador estivesse contando uma história. Cada aula não dura mais do que 30 minutos.

"É preferível abrir mão de detalhes, mas ter certeza de que as crianças vão absorver o conhecimento", argumenta. Os alunos só escrevem na hora de resolver os exercícios em sala de aula. Não há dever de casa. Assim, se tiver dúvidas, a criança não se angustiará pedindo ajuda a pais e parentes que, em sua maioria, têm pouco ou nenhum estudo. A implementação do novo método será feita aos poucos. "Será a primeira aplicação da metodologia em larga escala e esperamos melhorar o aproveitamento dessas crianças", diz a secretária municipal Cláudia Costin. "Será uma nova forma de o professor se relacionar com a turma, em qualquer disciplina."