Mais cedo do que esperavam, oficiais da Aeronáutica puderam comemorar, no início do mês, o anúncio feito pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva de retomada do processo de compra de 12 novos caças para a Força Aérea Brasileira (FAB). Trata-se de um pacote estimado em US$ 778 milhões que havia sido posto na gaveta em janeiro, logo após a posse de Lula, com a promessa de se voltar a ele somente depois de um ano. Além de revitalizar a combalida defesa aérea nacional – nossos Mirage III estão muito próximos da aposentadoria compulsória – a disputa travada pela Dassault-Embraer (França-Brasil); Sukkhoi-Avibrás (Rússia-Brasil); Saab/BAe System (Suécia-Reino Unido); Lockheed Martin (EUA) e Mikoyan-Gurevich (Rússia) para a venda dos novos caças representa, para o Brasil, uma oportunidade ímpar de transferência tecnológica e contrapartidas comerciais. “Tecnicamente os aviões são muito parecidos. Para a FAB, qualquer um deles é interessante, mas essa será uma decisão política”, afirmou a ISTOÉ o tenente-brigadeiro do ar Luiz Carlos Bueno, comandante da Aeronáutica. Em entrevista de aproximadamente uma hora, Bueno detalhou o que o governo espera receber como contrapartida dos fabricantes desses caças, assegurou que o Brasil comprará outros lotes dos mesmos aviões – se as condições econômicas permitirem – e revelou o enorme desejo de que a disputa em curso traga à indústria brasileira a oportunidade de dominar a tecnologia supersônica.

Segundo Bueno, o anúncio do caça escolhido pelo Conselho de Defesa Nacional deverá ser feito até o dia 15 de dezembro. Depois de definido o avião, o governo deverá fazer uma nova disputa internacional em busca de financiamento para a compra dos caças. “O processo é bastante complexo, mas esperamos contar com os novos aviões o mais rápido possível”, disse. “Em janeiro de 2005, os atuais Mirage III estarão fora de atividade.” A seguir, a entrevista com o comandante:

ISTOÉ – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a retomada da licitação para a compra de 12 caças para a Força Aérea Brasileira. No que esse processo difere da licitação que estava em andamento no governo anterior?
Luiz Carlos Bueno

No começo do ano, o presidente interrompeu o processo de compra dos caças que irão substituir os nossos Mirage III. Agora, o presidente Lula está retomando o processo e determinou que
a partir de 1º de outubro tudo fosse reiniciado. No processo em si nada muda. Chamamos todos os que estavam participando – os russos com o Sukkhoi Su-35 e o Mig-29, os EUA com o F-16, a Suécia e o Reino Unido com o Grippen JAS-39 e os franceses com o Mirage 2000-5 ou 2000-9 ou ainda com alguma coisa mais evoluída que eles têm – e pedimos que, até o início de novembro, apresentem uma proposta
final. Só vão participar aqueles que estavam na disputa na época
em que o presidente a suspendeu.
 

ISTOÉ – Então os critérios da disputa são exatamente iguais aos que foram definidos pelo governo de FHC?
Luiz Carlos Bueno

As propostas serão julgadas com os mesmos pesos já definidos anteriormente, o que esperamos é que haja melhorias nas propostas oferecidas. Apostamos que essas propostas melhorem.
 

ISTOÉ – Quais são as mudanças esperadas pelo governo?
Luiz Carlos Bueno

 Os fabricantes podem apresentar modificações técnicas nas aeronaves, podem apresentar melhorias na oferta, como, por exemplo, oferecerem 15 aviões pelo preço de 12, o que seria muito bom. Também podem melhorar as ofertas de contrapartida comercial (offset). Isto é, se eles, suponhamos, estipularam que comprariam do Brasil um milhão de toneladas de frango, ou de boi, por cada avião, podem, agora, dizer que compram dois milhões de toneladas por avião. Estamos no aguardo dessas propostas.

ISTOÉ – Não existe nenhuma orientação no sentido de dar mais ênfase às contrapartidas comerciais ou à transferência tecnológica, por exemplo?
Luiz Carlos Bueno

Posso lhe dizer que a decisão de comprar este ou aquele avião será necessariamente política. Para a FAB, qualquer um dos aviões é muito interessante, pois tecnicamente eles são muito semelhantes.

ISTOÉ – Uma decisão dessa não deveria seguir critérios objetivos?
Luiz Carlos Bueno

O fato de se tomar uma decisão política não significa que
ela não seja objetiva. Até 10 ou 12 de dezembro, vamos tabular
todas as propostas recebidas. Será dada uma pontuação para cada
item da proposta, seguindo critérios técnicos. No final, cada avião receberá um determinado número de pontos. As contrapartidas
também serão analisadas tecnicamente.
 

ISTOÉ – Como a Aeronáutica poderá avaliar tecnicamente uma contrapartida comercial?
Luiz Carlos Bueno

Esse é um processo muito complexo e a decisão não será tomada pela Aeronáutica, mas é evidente que as contrapartidas de natureza tecnológica são bastante decisivas e devem ser analisadas por critérios técnicos. Se alguém promete nos entregar o código-fonte de todo o software do avião, isso terá um valor muito grande. Um código-fonte desses que um país leva dez, 15 anos desenvolvendo seria uma fator decisório numa disputa como essa.

ISTOÉ – O projeto de modernização dessa frota de caças estipula a compra de 108 aviões até 2015 ou 2020. No entanto, essa licitação trata de apenas 12. O vencedor dessa disputa estará automaticamente habilitado para fornecer os demais aviões?
Luiz Carlos Bueno

Pelo que temos visto, a decisão de aumentar o número de aviões fica muito difícil dentro da situação atual de nossa economia. Há interesse e há vontade, mas em política se faz aquilo que é possível. Acredito, também, que o interesse dessas empresas que estão na disputa não seja motivado unicamente pelo mercado brasileiro. Elas estão motivadas pelo mercado sul-americano. A tendência é a de que todos os países procurem um equilíbrio, como existe hoje. O país vencedor tem interesse de que, a partir da compra feita pelo Brasil, outros países procurem o mesmo tipo de avião.
 

ISTOÉ – Mas a idéia é que a economia brasileira cresça, o que possibilitaria a compra de mais aviões.
Luiz Carlos Bueno

Isso é o que nos esperamos. Nesse caso, tenho a certeza absoluta de que o avião escolhido agora será forçosamente o avião que será comprado no futuro.

ISTOÉ – Com ou sem nova licitação?
Luiz Carlos Bueno

Existe uma questão de padronização. Um avião desses implica equipamentos de apoio de solo, em testes de manutenção, em instalação de oficinas para reparar os equipamentos, em conhecimento dos que serão responsáveis pela manutenção e também daqueles que irão voar. Então, estamos falando de algo que não é barato. Os aviões que comprarmos ficarão muito tempo em atividade, evidentemente cada vez com mais modernidade. Queremos algo que dure no mínimo 30 anos.
 

ISTOÉ – Qual será a missão prioritária desses 12 aviões?
Luiz Carlos Bueno

Eles ficarão em Anápolis (GO). Serão os guarda-chuvas do poder nacional, do Congresso, do Executivo e do Judiciário. Serão usados para defesa e para a função básica da FAB: negar nosso espaço aéreo a qualquer elemento que tente violá-lo. São aviões capazes de interceptar e destruir qualquer inimigo que se aventure. Queremos aviões capacitados para a defesa aérea e não para atacar, como acontece com os nossos atuais Mirage-IIIBR.
 

ISTOÉ – Existem planos para que esses aviões desenvolvam missões conjuntas com a Marinha?
Luiz Carlos Bueno

 Não. Nem que venham a realizar missões fora de nossas fronteiras.
 

ISTOÉ – A compra de apenas 12 aviões não justifica a instalação de uma linha de montagem no Brasil. Como, então, o sr. espera assegurar uma transferência de tecnologia?
Luiz Carlos Bueno

Isso é o que mais esperamos encontrar nas propostas, a contrapartida no que diz respeito à transferência de tecnologia. Há uma série de coisas que temos ouvido falar e que também já foram oferecidas.

ISTOÉ – Por exemplo?
Luiz Carlos Bueno

Conhecimento ou abertura para a indústria nacional em vários setores. Não precisa ser só a indústria aeronáutica. Não se trata apenas da FAB, mas do País. Para nós, o que mais interessa é adquirir conhecimento que a Embraer não tem sobre vôo supersônico.
 

ISTOÉ – Como isso pode, na prática, ser ofertado?
Luiz Carlos Bueno

Esperamos que essas empresas se disponham a levar técnicos da Embraer, da Avibrás ou de qualquer outra companhia brasileira para que façam upgrades de conhecimentos sobre determinadas partes, ou teorias, ou práticas que ainda não temos. Esses homens voltarão para cá e poderão trazer informações de como se fazer. Acho que isso é bastante viável e espero receber boas propostas nessa direção.

ISTOÉ – O sr. já visitou as empresas concorrentes?
Luiz Carlos Bueno

Já visitei a Dassault. Estava em uma feira na França e me convidaram para conhecê-la. Cheguei lá e me mostraram a linha do Mirage 2000. Foi interessante. Recebi um convite para conhecer na Rússia a fábrica do Sukkhoi. O brigadeiro Astor estava em uma reunião de chefes do Estado-Maior e passou pela fábrica do F-16. Agora, vou à Suécia para conhecer a fábrica do Grippen.
 

ISTOÉ – No projeto AMX, desenvolvido com os italianos, obteve-se uma efetiva transferência de tecnologia?
Luiz Carlos Bueno

Houve. Tanto é que a Embraer hoje em dia faz os jatos EMB-145, 170 e 190. Agora, nesse contrato dos caças, precisa ficar muito bem definido quais serão os setores beneficiados com a transferência de tecnologia. Assim, poderemos dar um salto de desenvolvimento.
 

ISTOÉ – Com tudo isso, quando o sr. espera receber esses aviões?
Luiz Carlos Bueno

No mínimo em três anos. No máximo em cinco anos.

ISTOÉ – Devido às dificuldades econômicas, é possível que o Brasil venha a reduzir o número de aviões na hora do financiamento?
Luiz Carlos Bueno

Doze é o número mínimo necessário. Menos que isso, não adianta nada para nós. Avião está sempre em manutenção, seja por horas voadas ou por tempo de vida. Então, forçosamente, sempre teremos dois ou três desses aviões parados. Ainda mais por causa das condições climáticas do Brasil, que favorecem a corrosão.

ISTOÉ – Mas qual a nossa necessidade para o tipo de missão a que se destina esse avião?
Luiz Carlos Bueno

Precisamos de, no mínimo, oito aviões por dia. São
precisos vários pilotos treinados e, para treiná-los, é preciso que
os aviões estejam voando. Temos sempre um avião pronto para
decolar em dois minutos, já com o piloto e na cabeceira da pista.
Basta tocar a sirene para a decolagem.
 

ISTOÉ – Essa sirene tem tocado?
Luiz Carlos Bueno

Já houve necessidade, já interceptamos. Por exemplo, na
guerra das Malvinas (1982), às duas horas da manhã, interceptamos
uma aeronave que sobrevoava nosso território. Nossos F-5 decolaram
e obrigaram o pouso na Base Aérea do Galeão (RJ). O avião estava com foguetes e fora de rota. Outra vez, fizemos um avião peruano pousar
em Anápolis. Já pegamos também um avião do Kadafi (Muammar Kadafi, dirigente da Líbia) que estava cruzando o Brasil cheio de armas.
Esse fizemos pousar em Manaus (AM). Estamos sempre atentos,
pois nosso espaço aéreo é muito grande. Para isso contamos com
18 Mirage III, com oito disponíveis.
 

ISTOÉ – E esses caças não têm dado conta do recado?
Luiz Carlos Bueno

Eles estão muito superados. Só para lhe dar uma noção: quando esses aviões foram adquiridos, os radares permitiam uma ação a uma distância de 12 milhas; hoje, essa distância caiu para apenas três milhas, o que coloca em risco a segurança da missão. Se precisarmos fazer uma interceptação real, à noite, corremos o risco de bater no avião inimigo. Os radares de nossos caças já praticamente não funcionam. Os aviões de hoje fazem essa operação a 60 milhas.

ISTOÉ – Com a chegada dos novos caças, o que será feito com os nossos Mirage III?
Luiz Carlos Bueno

Ninguém aceita comprar nem para fazer panela. O
tempo deles vai acabar. Em 1º de janeiro de 2005, esses aviões
serão definitivamente aposentados.