06/02/2002 - 10:00
Os dois fóruns mundiais, o Social, em Porto Alegre, e o Econômico, em Nova York, são antagônicos em tudo, mas neste ano têm algo importante os unindo: ambos acontecem sob o impacto e a influência da escalada mundial da violência dos últimos meses. Dos ataques terroristas de 11 de setembro à ofensiva militar americana no Afeganistão, passando pela instabilidade crescente entre israelenses e palestinos e crises localizadas como a da Argentina. Porto Alegre abriu o Fórum Social com uma manifestação pela paz que reuniu 40 mil pessoas. Partiu em seguida para as discussões sobre a construção de um novo mundo. Em Nova York, os debates do Fórum Econômico seguem em busca de saídas para a recessão e a guerra contra o terrorismo.
Com mais de 2,5 mil jornalistas do mundo inteiro – metade estrangeiros, metade brasileiros – cobrindo o evento, a turma de Davos já perdeu uma hegemonia –, é impossível falar do Fórum Econômico Mundial sem mencionar o seu concorrente do Sul. Em sua segunda edição, o Fórum Social dobrou de tamanho. Enquanto o número de participantes duplicou, o de inscritos como delegados para os debates triplicou – soma agora 15 mil.
O Fórum transformou-se em vitrine de políticos em campanha eleitoral e virou febre no país da moda, a França, representada em Porto Alegre por três candidatos a presidente da esquerda, por representantes do atual presidente Jacques Chirac, de centro-direita, além do barulhento José Bové, com seu cachimbo e bigodão, líder da Confederação Camponesa, uma organização que congrega movimentos de trabalhadores rurais de vários países. Bové veio mesmo sem ser convidado. E não foi por esquecimento – os organizadores querem neste ano menos barulho e mais trabalho, discussões, troca de informações entre as cinco mil organizações presentes de quase 150 países.
O evento em Porto Alegre não dará trégua às idéias de banqueiros, executivos, ministros, presidentes, escritores e acadêmicos que estão reunidos no Fórum Econômico Mundial. Assim, as teses que dominam o mundo capitalista desde meados dos anos 80 – abertura das economias nacionais, privatização, redução do poder do Estado sobre os mercados, tudo aquilo que nos últimos anos passou a ser enfeixado na palavra neoliberalismo – continuam sendo o principal alvo da munição intelectual do encontro de Porto Alegre.
E que munição! O linguista americano Noam Chomsky, intelectual cinco estrelas, está em Porto Alegre, assim como Perez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz em 1980; Mário Soares, ex-presidente de Portugal; Baltazar Garzón, juiz espanhol responsável pelo processo contra o ditador chileno Pinochet… “Aqui discutimos a globalização verdadeira, de toda a sociedade”, disse Chomsky em sua primeira participação no evento, quinta-feira 31. “O Fórum Econômico se preocupa com uma globalização específica, que interessa apenas às grandes empresas.”
O embate entre essas duas visões de mundo promete se acirrar. Ao menos é o que desejam as Organizações Não-Governamentais (ONGs) que costuraram o Fórum Social. “Consenso” não é a palavra de ordem no Fórum Social. Ao contrário, provoca arrepio. Chico Whitaker, presidente da Comissão Brasileira de Justiça e Paz, órgão ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), um dos coordenadores do evento, diz que não haverá nenhum documento final com propostas ou reivindicações. “O Fórum é um espaço de discussão, onde várias organizações sociais do mundo todo trocam informações, experiências, estreitam contatos e saem fortalecidas”, diz Whitaker.
A postura “contracorrente” do Fórum Social deste ano também incluiu alguns “barrados no baile”. Foi o caso do primeiro-ministro belga, Guy Verhofstadt, que teve seu pedido de participação como delegado negado porque seria um “aderente ao neoliberalismo”. O mesmo raciocínio serviu para negar o pedido de um representante do Banco Mundial. Também foram recusadas as inscrições de organizações ligadas à luta armada, como os espanhóis da ETA.
Ainda que não seja o objetivo final, o FSM promete ser um empreendimento lucrativo. O governo do Rio Grande do Sul gastou R$ 2,35 milhões (a prefeitura da capital, outros R$ 900 mil) e a renda deixada na cidade pelos mais de 40 mil participantes será de R$ 23,5 milhões.
Confraria de ricos em NY
Osmar Freitas Jr. – Nova York
Pela primeira vez em 32 versões, o World Economic Forum (o Fórum Mundial de Economia) não foi realizado em Davos, na Suíça. Neste ano 2002, os mais de três mil participantes – desta que é considerada a maior concentração da elite endinheirada e de cérebros financeiros privilegiados por metro quadrado – se reuniram em Nova York. Uma guinada de rota, diga-se, que pretendia prestar solidariedade à cidade depois dos atentados terroristas de 11 de setembro. Entre os dias 31 de janeiro e 4 de fevereiro, esta liderança econômica transnacional tomou de assalto salões, corredores, restaurantes, barzinhos, butiques e os 1.425 quartos do Hotel Waldorf-Astoria, na luxuosa Park Avenue de Manhattan. Faltou lugar para acomodar a massa milionária, o que forçou mais da metade a um downgrade de acomodações nos inferiores hotéis InterContinental e Palace. Felizmente, entre lágrimas e resmungos, ajeitaram-se todos. Afinal, os objetivos dos encontros em Davos sempre foram: diversão, esqui, bate-papo e confraria (network, no jargão da turma). Manhattan pode não proporcionar a qualidade de esqui dos Alpes suíços – ainda que uns farelos de neve caíssem juntamente com uma garoa fina; mas em termos de diversão para gente endinheirada a Big Apple é campeã. E que ninguém ficasse preocupado com a própria segurança – as carteiras gordas estavam bem guardadas e a integridade física de cada um destes potentados, protegida por nada menos do que quatro mil policiais. Ou seja: tinha mais polícia do que rico, o que transformou Nova York num lugar mais seguro do que um vilarejo alpino.
O enorme contingente policial foi explicado pelo comissário Raymond Kelly – recém-empossado como xerife maior de Nova York – como precaução contra terroristas.
Fossem eles do bando de Osama Bin Laden, ou das hordas bagunceiras anarquistas que em 1999 interromperam a reunião da Organização Mundial de Comércio em Seattle com protestos contra as desigualdades sociais e maus-tratos à ecologia. A moda pegou e essa tribo descontente prosseguiu em campanhas até provocar mortes na reunião econômica em Gênova, no ano passado. Como forma de identificação da turminha ecoanarquista que adota como uniforme os trajes negros acompanhados de bandanas cobrindo o rosto, foi ressuscitada uma lei municipal, datada de 1845, proibindo o uso de máscaras em manifestações. Esta e outras medidas – como o bloqueio de dez quarteirões entre as ruas 57 e 47 e Lexington Avenue – isolaram os participantes do Fórum Econômico num casulo no meio do maior centro financeiro do mundo. Nem mesmo jornalistas eram autorizados a se aproximar do Waldorf-Astoria – com ou sem credencial.
Por esse motivo, permanecem envoltas em mistério as razões que fizeram com que o Chade enviasse uma comissão de potentados daquele país em número suficiente para exigir 16 limusines de prontidão 24 horas, por quatro dias. A tabela para tal serviço é de US$ 100 a hora ou US$ 153.600 no total para a caravana. O Chade está incluído na lista elaborada pela Organização das Nações Unidas dos países mais miseráveis do mundo. Sessenta e cinco por cento da população daquela nação vive com menos de US$ 1 por dia. Ou seja: 38.400 pessoas no Chade podem ter ficado sem comer entre os dias 31 e 2 últimos.
Assim, porque o embaixador do Chade, Mr. Hassaballah Ahmat, não falou com a imprensa, os repórteres tiveram de se contentar com George Soros. Este, um banqueiro que já foi patrão de diretores de bancos centrais de vários países, movimenta diariamente mais do que o PIB do Chade que é de US$ 8 bilhões. “O que se espera aqui é determinar como retomar o crescimento econômico mundial. Só assim, poderemos tratar satisfatoriamente dos outros itens que estão na pauta deste Fórum Econômico e são: promover a segurança em nível global e reduzir drasticamente a miséria no planeta”, disse a ISTOÉ. É verdade que nunca se conseguiu produzir nenhuma medida prática derivada dos encontros econômicos de Davos. Mas em Nova York, pelo menos, já se está cumprindo parte do proposto na pauta. Segundo a Secretaria de Turismo local, a confraria de milionários vai redistribuir algo em torno dos US$ 19 milhões de sua riqueza entre os habitantes da cidade, em troca de boa comida, bebida e outras coisas boas da vida.