Quem circula pelo centro da cidade do Rio de Janeiro às vezes não imagina o que se esconde por trás dos antigos prédios da região. Um deles, localizado na rua General Justo, guarda tesouros, como obras raras e instrumentos médicos, que contam a história da medicina no Brasil. Trata-se da sede da Academia Nacional de Medicina. A entidade foi fundada em 1829 por um grupo de médicos coordenado pelo cirurgião Joaquim Cândido Soares de Meirelles. Até hoje já se passaram 174 anos desde a sua criação, mas, ao entrar no local, o visitante tem a sensação de voltar no tempo. O cheiro de mofo no ar, a escada em formato de caracol com corrimão dourado, coberta por um tapete vermelho, e o mobiliário, ao mesmo tempo que revelam um certo ar decadente, remetem ao passado histórico da entidade. Porém, os integrantes da academia não pararam no tempo. Os acadêmicos estão cada vez mais adaptados às exigências da ciência e da sociedade modernas. E a maior prova disso é que os imortais da medicina – sim, como na academia de letras, eles também são imortais – querem abrir as portas da entidade aos meros mortais.

O objetivo é mostrar ao público as preciosidades da biblioteca e do museu. “Não podemos ficar encastelados”, justifica Pietro Novellino, 51 anos, presidente da academia. A intenção é incluir a instituição no roteiro turístico da cidade até o início de 2004. Para receber os visitantes com a casa em ordem, serão realizadas obras de infra-estrutura e de recuperação do acervo. As iniciativas nesse sentido já começaram. Recentemente, foi criada a Associação dos Amigos da Academia, composta por empresários, artistas e intelectuais que ajudarão a angariar fundos para as reformas.

O visitante se surpreenderá com os tesouros da academia. Logo ao entrar no museu, depara-se com uma réplica do primeiro estetoscópio, que chegou ao Brasil no século XIX. Inventado em 1818 pelo médico francês Rene Laennec, amigo de dom Pedro I, o instrumento é feito de madeira e se parece com um canudo. Seu formato foi desenvolvido assim porque na época os maridos queriam que os médicos ficassem o mais longe possível de suas esposas durante o exame clínico. Com o longo instrumento, era possível escutar os batimentos cardíacos sem se aproximar delas. Ao circular pela sala, o interessado certamente sentirá arrepios ao ver a máscara de ferro que era preenchida por um tecido embebido em álcool e colocada no rosto do paciente para anestesiá-lo antes de uma cirurgia. São de espantar ainda os antigos aparelhos usados para fazer exames de fundo de olho. Eram verdadeiras engenhocas. O que está exposto foi produzido por volta do ano de 1900 e nem de longe lembra as máquinas sofisticadas de hoje. Ao observar a rudeza desses aparelhos, pode-se verificar o quanto a medicina evoluiu.

O acervo abriga também instrumentos que pertenceram a especialistas famosos. Um deles é o microscópio do médico Miguel Couto, que realizou estudos sobre febre amarela no início do século XX, além de peças como a cadeira usada por dom Pedro II quando ele presidia as sessões solenes da academia. A primeira da qual participou foi em 1835. Na época, a instituição era chamada de Academia Imperial de Medicina. Esse nome foi mantido até a Proclamação da República, em 1889.

As preciosidades literárias da academia são um deslumbre à parte. Sua biblioteca conta com 12 mil obras, 417 delas raras. Estão incluídos nesta lista estudos originais de médicos famosos, como Carlos Chagas e Oswaldo Cruz, uma coleção de dez obras escritas por Hipócrates – o pai da medicina – e o fac-símile do livro médico brasileiro mais antigo, o Erário mineral, de 1735. Escrito pelo médico português Luís Gomes Ferreira, a edição recebeu esse nome em homenagem à então Província de Minas Gerais, que se destacava no País pelo ouro que produzia. O livro ensinava os brasileiros a se tratarem com plantas nativas.

Quitutes – A academia zela não só pelo seu acervo, mas também por suas tradições. Todas as quinta-feiras, a instituição realiza, pontualmente às 17 h, o chá da tarde. O encontro, regado a quitutes requintados, servidos na mais fina prata, reúne integrantes da instituição. Um deles é o oncologista Gilberto Schwartsmann, 48 anos, um dos mais novos membros da entidade. O especialista entrou na academia no ano passado, mas já assumiu
a função de gerenciar a biblioteca. Gilberto é um dos organizadores
do Centro de Memória Médica, que trará informações sobre a origem
de cada especialidade no Brasil. “A intenção é construí-lo até o
final deste ano”, comenta.

Para fazer parte da academia é preciso passar por um processo seletivo rigoroso. O interessado deve ter no mínimo 15 anos de formado, apresentar uma tese inédita e receber pelo menos 30 votos entre os acadêmicos. Atualmente, a entidade conta com 100 integrantes – ao longo de sua história já passaram por lá 800 médicos. Todos precisam entrar no espírito da instituição. Seu objetivo é debater a ciência médica e suas novidades e ajudar os governos na formulação de políticas de saúde pública. Recentemente, foi incorporado ao seu rol de funções outras tarefas. Discutir com as universidades de medicina alternativa para melhorar a formação dos profissionais é uma delas. Como se vê, os imortais da medicina querem mais do que chá.