Catorze anos depois de ter surgido, o Consenso de Washington, celebrado por estimular economias mais competitivas, encontra o outro lado da moeda na Argentina: o Consenso de Buenos Aires, firmado na quinta-feira 16, entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Néstor Kirchner, para principalmente estimular a produção e o emprego.

Ao longo de todos esses anos, o Consenso de Washington só fez estragos na América Latina, aprofundando o abismo entre ricos e pobres, a maior desgraça entre todas da região. Suas políticas econômicas neoliberais funcionaram como um veneno que desencadeou uma crise de profundas sequelas. O propagado capital estrangeiro entrou, mas só para realizar manobras especulativas e altamente lucrativas. As contas externas sofreram um desequilíbrio de bêbado. “Embarcamos num ambicioso projeto para construir uma comunidade de nações unidas e solidárias”, disse o presidente brasileiro. “Este é um documento que unifica posições diante dos organismos internacionais”, disse Kirchner no encontro da Casa Rosada.

O documento contém 23 pontos permeados por objetivos progressistas
e políticas que favoreçam a produção e a criação de empregos, passando uma borracha no “pensamento único” expressado pelo Consenso de Washington e adotado como referência para os ex-presidentes dos
dois países, Fernando Henrique Cardoso e Carlos Menem, este com uma fúria de privatização e desregulamentação jamais vista na região. A herança deixada pela dupla que utilizou o Consenso como cartilha foi
uma enorme dívida pública para os dois países, um dos pontos centrais
do documento assinado agora, no tópico 19: “A administração da dívida pública deve ter como horizonte a criação de riqueza e emprego, a proteção da poupança, a redução da pobreza, o fomento à educação
e à saúde, bem como a possibilidade de manter políticas sustentáveis
de desenvolvimento econômico e social.”

Sobre a delicada questão das negociações da Área Livre de Comércio
das Américas, a polêmica Alca, o acordo reforça várias vezes “que o intuito de qualquer negociação é alcançar um acordo equilibrado que respeite os interesses díspares dos participantes e dê ao processo a flexibilidade necessária para permitir que a negociação se desenvolva conforme a situação de cada um dos países e blocos envolvidos”.
Essa sequência bem montada de palavras tem nas entrelinhas um
recado determinado e muito simples aos Estados Unidos: não vem (querendo mandar) que não tem. Tanto o Brasil como a Argentina parecem decididos a não cair no jogo americano e dispostos a
obter concessões adicionais em temas como patentes, compras governamentais e serviços, os mais polêmicos da pauta.

Se havia algum mal-entendido entre Lula e Kirchner, ele ficou para trás. Encerradas as discussões, os dois e suas respectivas esposas iniciaram um passeio por um dos símbolos da Patagônia – os belíssimos glaciares
do Perito Moreno, em El Calafate, patrimônio da Unesco, na província
de Santa Cruz, terra do presidente argentino Néstor Kirchner. Do tango, outra riqueza dos nossos vizinhos, Lula e Marisa viram apenas o nome
do avião presidencial, Tango 01, que os levou para o passeio. Antes de retornar ao Brasil, Kirchner deveria cumprir uma promessa feita a Lula: servir ao presidente brasileiro o suculento cordeiro patagônio, a especiaria mais famosa da região.

Revanche com sobremesa ao Consenso de Washington? Aos jornais argentinos, o ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores, tratou de acabar com a idéia de confronto. “Se eu digo que o Rio de Janeiro é uma cidade maravilhosa isso não quer dizer que Paris não seja a cidade luz. Além disso, o Consenso de Washington está tão superado que não é preciso contrapor alguma coisa a ele.”