São tantas as boas lembranças da longa temporada brasileira do cantor, compositor e humorista Henri Salvador, 86 anos, que elas ocupam um espaço especial na sua história. Salvador desembarcou no Rio de Janeiro em 1941, recém-casado, vindo de Paris, onde hoje mora num belo apartamento na exclusiva Place Vendôme, endereço das maiores grifes e do mítico Hotel Ritz. O então jovem Salvador, natural de Sinnamary, Guiana Francesa, veio aos trópicos com a orquestra de Ray Ventura, enquanto a guerra explodia na Europa. Adotou o País sem se importar com a penúria aqui passada. Para comprar comida, roubava garrafas de refrigerantes do Cassino da Urca e as vendia, pois não recebia cachê de Ventura, que gastava tudo no jogo. Mesmo assim, o Brasil não lhe sai da memória. Tanto que seu 28º álbum, o já essencial Ma chère et tendre – cujo lançamento mundial acontece na terça-feira 28 –, faz várias referências à terra de Grande Othelo, considerado por Salvador uma das cinco maiores personalidades que ele conheceu, conforme segredou ao jornal O Estado de S.Paulo.

Vous, segunda faixa do disco, composição de Guy Béart, datada de 1958, abre com um pandeiro brasileiríssimo no ritmo, acompanhado de um violão joãogilbertiano. É um samba parisiense. Tão chique como se Paulinho da Viola entoasse uma canção francesa. O Brasil volta à tona na bossa pop Toi, no samba-canção Bormes-les-mimosas e na bossa Itinéraire. Este apego à brasilidade também encontra resposta na admiração por João Gilberto, a quem considera um de seus ídolos modernos. Quando Salvador se instalou por aqui, o Rio, ainda capital federal, tinha dinheiro circulando. Desfrutava do charme único de um balneário sem violência e pleno de glamour. O músico trabalhou bastante. Entre os cariocas iniciou sua carreira
solo. Circulava por várias casas
noturnas, encantando platéias com seu savoir-faire lapidado em
décadas na Cidade Luz.

Paris – Ele desembarcou com os pais em Paris, aos sete anos. O pai queria que fosse advogado ou médico. Mas logo apaixonou-se pelo circo e pelo cinema, descobriu sua capacidade para fazer rir observando pessoas pitorescas na rua. Ainda adolescente, entrou em contato com a voz singular de Louis Armstrong e com o suingue do compositor, maestro e pianista de jazz Duke Ellington, com quem tocou mais tarde. Fascinado por Nat King Cole, de certa forma herdou seu estilo adaptando-o ao modo francês de cantar. Fez a alegria de muitas platéias, acrescentando requinte a elas com sua voz grave e macia como o veludo. Basta ouvir a faixa-título do recente CD. A suavidade de seu timbre é um bálsamo nestes tempos de excessos eletrônicos. Igual sensação acontece em C’était un jour comme les autres ou em Le voyage dans le bonheur, três composições de sua autoria, com diferentes parceiros, todas carregando na melodia um clima de romance, pulverizado ao som de discretos violinos e metais ou de violões notívagos.

As canções guardam certo tom nostálgico, mas não são passadistas. Algumas relembram a atmosfera dos anos 1950, época em que o artista começou a conhecer a popularidade na terra onde foi criado. Fazia programas de televisão de grande audiência. Com eles, aprimorou sua veia humorística. No alvorecer da década, conheceu Jacqueline Garabedian, sua segunda mulher, morta em 1976. Ela é a personalidade mais importante da sua vida. Grande parte da suavidade de Henri Salvador – que continua com impressionante vitalidade – certamente vem deste romance agora eternizado em canções tão sofisticadas. Esse mulato quando canta é luxo só.