30/01/2002 - 10:00
No cotidiano de Joseph Hilditch não existe espaço para violência. Nem mesmo para a agressividade ao não aprovar, com a arte e a experiência de um gourmet, eventuais receitas quentes ou sobremesas feitas no seu bufê, que comanda com mãos de artesão. Hilditch é apenas severo na sua intenção de qualidade, razão pela qual todos o respeitam e admiram. O que ninguém sequer imagina é que por trás do pacato e metódico cidadão da cidade inglesa de Birmingham se esconde um ser aterrorizador, perdido em seus sentimentos, anacrônico em relação a um mundo atrelado aos anos 50. Para ele, o importante é servir, seja de que maneira for. Dentro desta qualidade mascarada de bondade, o comerciante traz à tona as lembranças mais repugnantes de sua infância, transformando-as em maldades que a jovem irlandesa Felicia irá amargar. Antes até de ver sua ingenuidade decepada com a mesma destreza com que seu algoz prepara os pratos mais requintados sob a orientação e o sotaque francês de sua mãe, uma simpática apresentadora de programas culinários da televisão em preto-e-branco, constantemente reprisados por ele em vídeo. É assim que Atom Egoyan, diretor nascido no Cairo e criado no Canadá, concebeu O fio da inocência (Felicia’s journey, Canadá/Reino Unido, 1999) – em cartaz no Rio de Janeiro e em São Paulo na sexta-feira 1º –, baseado no romance do irlandês William Trevor.
Para dar vida a Hilditch, o cineasta escolheu Bob Hoskins, um ator acostumado a ser mau nas telas, mas – ao contrário da canastrice de um Jack Nicholson, por exemplo – capaz de destilar as mais impuras intenções, sem apelar para os cacoetes de vilão. Na opinião de Hoskins, que, entre outros filmes fez Uma cilada para Roger Rabbit, seu personagem “é uma mistura de Jack, o Estripador com Ursinho Puff”. Não à toa, enquanto filmava sob a umidade e o frio do clima inglês, ele se sentiu doente. Também acordava no meio da noite para checar se a família estava bem, especialmente as filhas de 26 e 16 anos, idades próximas dos 19 anos de Felicia, sensivelmente interpretada por Elaine Cassidy, que recentemente fez um pequeno papel em Os outros, terror protagonizado por Nicole Kidman. Felicia não está feliz. Ficou grávida de seu namorado, que deixou a Irlanda para cometer a mais atroz das traições para um cidadão local: alistar-se no Exército britânico.
Sem ter notícias do jovem amante, ela inicia sua jornada à Inglaterra na esperança de encontrá-lo. Depara com a conversa mansa e o jeito paternal de Hilditch, um especialista em acalmar moças desesperadas até inverter a situação e vê-las em pânico filmado dentro do seu pequeno automóvel.
O fio da inocência
une dois personagens atados a um mundo irreal. Ele não se desliga do passado. Ela dá todos os toques de que ainda acredita num conto de fadas. Desplugados da realidade, o encontro deixa a certeza de que o dono do bufê não está nem um pouco interessado em resolver carências, as suas e as dela. Só quer continuar dando vida aos seus fantasmas. E que fantasmas! Egoyan teve plena liberdade para montar sua história produzida pela empresa do ator Mel Gibson. Fez um filme violento, sem jorrar uma gota de sangue. A dor provocada e sentida nem sempre é sanguinolenta.